quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Diário*

* Crônica publicada na edição 1100 do Jornal Observador

A noite foi terrível. Como sempre, ele me deixou sozinha num canto e foi falar com não sei quem. Fiquei plantada quase uma hora, igual uma idiota. Os outros convidados pareciam rir de mim: o que essa moça faz ali imóvel todo esse tempo?

Cheguei a pegar uma latinha de cerveja só para disfarçar o mal estar. Logo eu, que não bebo absolutamente nada. Mas acho que o olhar tenso denunciava meu desconforto. Obviamente, fiquei o resto da noite emburrada. Ele não gostou, ficava perguntando o que tinha acontecido. Acusou-me de estragar tudo toda vez que saíamos.

Para piorar, o meu ex-namorado apareceu na confraternização e ele passou a me infernizar ainda mais, insinuando que eu provocara o outro. Que culpa tinha eu se o cara passou perto da gente por acaso? Eu nem sabia que aquele imbecil trabalhava na mesma empresa; aliás, eu sequer tinha notado a presença dele. Mesmo assim, me pegou pelo braço com tanta força que pensei até que ele fosse me agredir.

Como homem é idiota, inverte prioridades. Atribui um peso àquilo que não representa absolutamente nada, enquanto parece não se importar com aquilo que realmente deveria estar atento.

Reagi: prometi deixá-lo. Ele chacoalhou os ombros. Parecia estar seguro de que eu voltaria atrás, como nas outras vezes. Só que hoje, pobre homem, vai ser diferente.

E quando ele aparecer com aquela cara deslavada pedindo para voltarmos, vou dizer calmamente “não”. Ele fará juramentos, vai prometer mundos e fundos. Vou reiterar, muito segura: “não”. Ele então vai recorrer ao plano B, noivado e casamento. Inútil. Vai perguntar, desesperadamente, como é que as coisas mudaram assim do dia para a noite só por causa de uma briguinha. Em vão. O último estágio é implorar aos meus pés, aos prantos, depois de pedir o apoio dos meus pais para a sua causa perdida.

Só então ele vai entender que a pior coisa para um homem é a brutal indiferença feminina em relação ao passado, capacidade que só a mulher domina plenamente.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O Saci, um estudo*

*Crônica publicada na edição 1095 do Jornal Observador

Compreender a complexidade desse espécime 100% brasileiro não é uma proposta recente.

Em 1918, o escritor Monteiro Lobato publicou o livro “O Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito”, que traz sua pesquisa acerca do tema. Embora a publicação tenha se tornado literatura básica para estudiosos, é na tradição oral que comumente são encontrados os relatos de avistamentos mais significativos.

Todavia, com o avanço da ciência, já é possível traçar as principais características do Saci, que segundo os “saciólgos” esteve à beira da extinção no início dos anos 90.

Segundo um estudo da Associação Nacional Dos Criadores De Saci (ANCS), entidade sem fins lucrativos sediada em Botucatu responsável pelo repovoamento do espécime, o Saci é um mamífero pertencente à ordem dos primatas geralmente encontrado no interior de São Paulo e Minas Gerais.

É um animal arredio e não se deixa fotografar. Vive predominantemente nas florestas mas durante a noite vagueia pelos arredores de vilarejos e pequenas cidades. Por ser bastante curioso, é comum ele mexer em roupas e ferramentas à vista, assim como fazer tranças na crina dos equinos.

Segundo os saciólogos, ter apenas uma perna foi a maneira que a natureza encontrou para garantir maior mobilidade ao Saci, que costuma permanecer oculto no interior dos bambuzais durante o dia.

Os estudiosos apontam ainda que a criatura representa a miscigenação racial tão presente na formação do Brasil, e o fato de o Saci dispor de apenas um membro inferior simboliza a violência dos brancos imposta aos africanos durante a escravidão.

Embora exemplares fossem encontrados com facilidade em meados do século passado, a espécie quase entrou em extinção devido a proliferação de abóboras transgênicas cultivadas exclusivamente com fins comerciais (quando ingerida, a fruta causa intoxicação e morte em sacis). Felizmente a realidade mudou e hoje há inúmeros institutos e órgãos empenhados em salvar o bicho.

Justamente com o objetivo de garantir a perpetuação do ser mítico, a ANCS iniciou um bonito projeto nos arredores de Botucatu que inclui, além do trabalho de reinserção através da reprodução em cativeiro, visitação turística a pontos onde há maior probabilidade de avistamentos. A iniciativa acabou contribuindo diretamente para a preservação da mata nativa, já que o Saci necessita de florestas para se desenvolver plenamente.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Compêndio sobre a existência*

*Crônica publicada na edição 1085 do Jornal Observador

Fixada sobre uma estrutura estranha está a Vida. De longe sua base parece firme, sedimentada em concreto armado, construída para durar infinitamente. Mas de perto é outra história: é sustentada apenas por vigas muito finas.

Sua temporalidade é determinada pela capacidade que essa estrutura frágil tem de suportar as peripécias e as adversidades. Às vezes as vigas entortam de tal forma que o rompimento parece iminente, inevitável. E então vem a surpresa: a Vida prospera novamente, emerge dos cacos da tragédia.

Mas nem sempre é assim. Há casos em que a Vida é pega de surpresa e nem tem tempo de reagir. É o Acaso, que trama contra tudo e contra todos. Ele está presente na ligação incômoda no meio da noite, no automóvel que avança a faixa enquanto o pedestre a atravessa, no diagnóstico inesperado, no olhar do filho que não será abraçado de novo.

Há aquele que pretende evitá-lo. Recorre a uma redoma e passa a viver fechado, protegido do mundo externo por uma bolha de plástico. Doce ilusão. O Acaso está em todo lugar e ninguém está imune. Um dia a bolha explode.

Quando não explode, o recluso percebe algo estarrecedor: perdera o trem da Vida enquanto tentava evitar o desconhecido, o novo, o adverso. Percebe que foi um mero espectador e não um protagonista de sua própria existência. Agora é tarde demais, a Vida dá seu último sopro. É o Acaso de novo surpreendendo até mesmo no leito de morte.

Os que têm um pouco de sorte ainda têm tempo para aprender uma última lição: Vida e Acaso são parte da mesma matéria e andam de mãos dadas. Fugir de ambos é fugir da própria existência.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Operação Lua Cheia*


* Crônica publicada na edição 1084 do Jornal Observador

O texto abaixo é verídico e foi escrito nos anos 60 pelo cientista paulistano Milton Octavio Ramirez, integrante do Núcleo de Estudos Paranormais da Universidade de São Paulo (USP).

Com o objetivo de estudar o mito do lobisomem, o estudioso percorreu o interior de São Paulo coletando relatos de moradores e indícios sobre a aparição da criatura. Era a chamada “Operação Lua Cheia”, projeto que os militares tentaram boicotar e ocultar da população durante a ditadura.

O resultado da pesquisa foi mantido em sigilo até recentemente embora o mundo acadêmico já tivesse conhecimento dela há décadas. A íntegra do documento está disponível na biblioteca da USP.

“Pode-se afirmar que lobisomem é europeu. Ele chegou com os primeiros imigrantes italianos. É neste grupo social e em seus descendentes que os relatos são mais facilmente encontrados.

Popularmente o surgimento do lobisomem está relacionado ao mito da maldição do sétimo filho. Essa tese, porém, não tem respaldo científico. A hipótese mais plausível, obtida por meio de análise laboratorial em vestígios deixados pela criatura, sugere a existência de uma anomalia genética que, em função de determinados estímulos externos, deflagra imediatas transformações físicas no corpo de seu portador.

Todavia, autópsia realizada em animais domésticos supostamente vitimados pela entidade descartou atividade humana mesmo em eventual estado alterado. Os padrões das perfurações encontradas nos cadáveres são incompatíveis com qualquer objeto humano existente na região.

As aparições estão geograficamente localizadas no interior do estado, predominantemente na zona rural. A cultura popular afirma que o mítico ser aparece em noite de lua cheia mas essa especificidade não é necessariamente verdadeira. Ocorre que a claridade da referida fase lunar facilita um eventual avistamento da criatura.

Aspectos físicos. Comumente atribui-se ao lobisomem uma morfologia híbrida, localizada entre homem e lobo. No entanto é difícil mensurar qual aspecto prevalece. Há relatos em que a figura aparece como um cão enorme. Outras testemunhas apontam que a entidade tem o aspecto quase humano, diferenciando-se apenas em função da presença de presas e garras descomunais.

O lobisomem utiliza um modo peculiar de locomoção para um quadrúpede. Ele introduz as mãos fechadas na boca, acomodando-as na região interna da maça do rosto, e utiliza os cotovelos como patas dianteiras. Desse modo a criatura fica curvada, ou seja, cabeça e tórax mais próximos do solo em relação ao quadril, diferentemente do alinhamento dos quadrúpedes comuns. Mesmo nessa postura aparentemente desconfortável ele é capaz de atingir cerca de 40 quilômetros por hora, haja vista as perseguições noturnas descritas por cavaleiros da região.

Moradores do distrito de Domélia, zona rural de Agudos, apontam que o ser ronda as casas da localidade com frequência. O último avistamento teria ocorrido há menos de uma semana. A moradora Isabel Aparecida do Prado Reis revelou que o marido foi obrigado a tapar as pequenas aberturas da residência de madeira por causa do temor que a criatura causa nas crianças. “Elas podiam vê-lo através das frestas”, afirma.

A moradora revelou outro dado interessante: a aparição mais consistente ocorrera exatamente na noite do nascimento de seu sétimo filho.”

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Jovem Demais Para Morrer*

* Crônica publicada na edição 1082 do Jornal Observador

Depois de permanecer por alguns minutos sentada à beira da cama, meio cambaleante, ela já não é mais capaz de sustentar o próprio corpo. Desaba, por sorte, sobre o leito. Nada de visual extravagante: veste jeans e camiseta branca como usualmente faz quando está em casa.

Impossível pegar no sono. Um violento tremor toma conta de seus braços e pernas. Seu cérebro gira. O teto, as cortinas, a mobília, o quarto todo está rodando. Seu corpo franzino, que por muitas vezes suportou os excessos, finalmente chegou ao limite. Não há ninguém ao seu lado. Ironicamente a estrela está só.

O colapso se instala. A respiração fica cada vez mais difícil. Ela arqueja desesperadamente em busca de oxigênio. É inútil: está sufocando. Os olhos esbugalhados suplicam por socorro. Mesmo ébria, ela tem medo. Teme por saber que provavelmente não verá a luz do dia de novo. Teme por estar sozinha. Teme por sentir que está sendo sugada por um redemoinho que acabara de surgir debaixo da cama. Ela não pode vê-lo, não tem forças para mirá-lo, mas sente que ele está ali, ruidoso. Tenta gritar mas só consegue emitir um gemido grave e abafado, o último movimento que seu corpo irá protagonizar conscientemente.

Uma pressão repentina no tórax elimina o resto de consciência que lhe sobrara. Os tremores se acentuam, estão mais intensos e ininterruptos. Seus olhos agora estão horrorosamente virados, os músculos do pescoço empurram a cabeça violentamente contra o travesseiro, a face descomposta. Em sua agonia, ela emite um ruído que não parece humano.

Finalmente a crise cessa. Resta apenas um corpo afundado na cama, imóvel. Seus lábios revelam um roxo vivo. Ao redor da boca há um líquido espumoso e resíduos sólidos expelidos por causa da violência dos espasmos.

Em poucos segundos o segurança vai entrar e, em desespero, ligar para a emergência. Tarde demais.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Ares Potosinos*

*Crônica publicada na edição 1077 do Jornal Observador

Um pouco antes do almoço, enquanto caminhávamos pelas ruas de Sucre pela última vez, fui acometido por uma pequena indisposição, algo semelhante ao estado gripal. Abri mão da refeição e investi num capuccino na esperança de que a cafeína me fizesse suportar as três horas de ônibus que teríamos que enfrentar até Potosí.

A indisposição aumentou vertiginosamente no início da noite depois de uma caminhada pela aladeirada cidade, considerada uma das mais altas do mundo. Potosí está situada a cerca de 3.900 metros do nível do mar (só a título de comparação, Piraju está a 650 metros) e à primeira vista não guarda qualquer resquício do ciclo da prata vivenciado no século XVI, exceto pela existência de casarões e ruelas estreitas típicas da arquitetura colonial. Está localizada aos pés de Cerro Rico, a mais importante mina do período hoje aberta à visitação.

Embora eu estivesse piorando a cada minuto, demorei a crer que meu lastimável estado fosse resultado do soroche, o mal da altitude. Na verdade chegamos a pensar que se tratava de mais um mito em relação à Bolívia assim como os boatos em relação ao Trem da Morte.

Amanheci ainda pior. Zé Renato, Felippe, o canadense e os franceses que dividiam o quarto conosco também passaram por maus bocados durante a noite, embora não na intensidade experimentada por mim. Os sintomas do soroche são dor de cabeça, diarreia e febre, porém tendem a desaparecer depois de 24 horas de sofrimento graças à adaptação natural do corpo à altitude. Naturalmente, a conjuntura desfavorável nos obrigou a adiar a partida para Uyuni, nosso próximo destino.

Mesmo devidamente diagnosticado pelo proprietário da pensão, uma questão ainda martelava minha cabeça: Santa Cruz de la Sierra vivia um surto de dengue quando passamos por ela dias antes. Então, ligando os pontos e observando que eu carregava todos os sintomas veiculados pelas campanhas brasileiras de prevenção, considerei seriamente estar com dengue.

Estava claro que havia uma confusão no diagnóstico em função da semelhança dos sintomas e concluí que poderia ser tarde demais quando a verdade viesse à tona. Seria uma chatice imensa morrer em Potosí e ser enterrado ali porém eu já me preparava psicologicamente para esse fim à medida que minha situação piorava. Apesar do apoio psicológico e logístico de Felippe e Zé Renato, eu estava decido a voltar para Sucre e tomar um avião até o Brasil caso conseguisse levantar a cabeça do travesseiro no dia seguinte (o simples ato de erguer um copo de água era uma tarefa extremamente dificultosa naquelas circunstâncias).

Mas, graças ao mate de coca, fui me recompondo aos poucos conforme havia previsto o dono da espelunca. (Nota aos ignorantes: a coca não é droga. Ela é utilizada nos Andes há milênios pois ajuda a suportar o ar rarefeito e combate diversos males. Além da função medicinal, os mineiros mastigam as folhas da planta com o intuito de amenizar a fome durante as extenuantes jornadas de trabalho que podem chegar a 16 horas. A coca tem ainda função religiosa e mística: é utilizada em rituais e os agricultores distribuem suas folhas no campo como oferenda à Pachamama – a Mãe Natureza – antes do plantio).

Acordei na manhã seguinte quase preparado para correr a Maratona Internacional de São Paulo. No entanto, como o ônibus para Uyuni só sairia depois do meio-dia, restou-nos arcar com o atraso de um dia no cronograma da viagem – o que nos custou uma diária extra – e a possibilidade de curtir um pouco mais os ares daquela cidade maravilhosa.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Caminhos*

*Crônica publicada na edição 1076 do Jornal Observador

A possibilidade de subirmos a pé até Machu Picchu me deixou preocupadíssimo. Enfrentar um desconhecido caminho montanhoso sob o frio da madrugada talvez não fosse uma ideia muito inteligente. Além disso, poderíamos ficar à mercê de ladrões e criminosos.

Mas, conforme o esperado, meus argumentos não convenceram e fui voto vencido na assembleia realizada durante o jantar em Águas Calientes, cidade situada a oito quilômetros da histórica cidade dos incas. Zé Renato, Felippe e Albino optaram pelo óbvio: ir até Machu Picchu caminhando seria muito mais simbólico. Eu também achava isso, só não queria chegar lá cansado e não perder a chance de apreciar o local. Albino, um professor aposentado de 62 anos natural de Viçosa, Minas Gerais, havia sido integrado ao grupo em La Paz.

Se a decisão da maioria contribuiu de maneira significativa para que aquela refeição não fosse das mais proveitosas, o aspecto do prato principal também não colaborou muito: o cuy assado, espécie de porquinho da índia considerado uma iguaria no Peru, é servido inteiro, inclusive com as patinhas retorcidas pelo fogo.

Partimos às 4h20 da manhã e ao contrário das minhas previsões encontramos poucos turistas no trajeto, o que traria certa segurança caso ficássemos perdidos. Mas nem foi necessário: o caminho até o cume é muito bem sinalizado e de fácil visualização mesmo na penumbra. Também não havia perigo de assalto, apenas desfiladeiros e escadarias infinitas no meio da mata que supostamente eram atalhos.

De súbito, Machu Picchu emerge depois de um pequeno caminho cercado por vegetação nativa. A visão é impactante e, óbvio, emociona. Depois de quase vinte dias de estrada, estar na cidade perdida dos incas representou o encerramento de um ciclo. O lugar é carregado de mística não apenas por simbolizar a opulência cultural daquele povo, mas também por ter passado incólume pela colonização espanhola (Machu Picchu só foi descoberta há cem anos). Representa, portanto, a resistência contra a imposição cultural do colonizador, sentimento ainda presente entre os nativos todavia sem conotação xenofóbica.

Pude constatar isso através da exposição de nosso guia turístico. Ele contestou a historiografia oficial que atribui ao pesquisador estadunidense Hiram Bringman o descobrimento de Machu Picchu. De acordo com o guia, um historiador peruano teria sido o primeiro acadêmico a chegar ali embora a população da região já soubesse da existência da localidade há séculos. Ocorre que Bringman teria ficado com a fama após coagir um nativo a levá-lo até as ruínas escondidas entre a vegetação.

Até hoje o Peru luta para reaver peças e artefatos usurpados pelos estadunidenses naquele período.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Segregados no Deserto*

*Crônica publicada na edição 1075 do Jornal Observador

Os israelenses têm um costume interessante: logo após o serviço militar – obrigatório para ambos os sexos – os jovens recém saídos das forças armadas viajam o mundo. O objetivo é conhecer outras culturas e ampliar os horizontes antes do ingresso na universidade. Isso parece explicar a enorme presença de turistas israelenses na América Latina. No entanto, contato com outras culturas pode não significar necessariamente interação conforme pudemos observar “in loco” nos três dias de passeio pelo deserto boliviano.

Estamos na região de Uyuni, que além da belíssima planície de sal congrega ainda paisagens áridas, picos nevados, vulcões inativos e lagoas coloridas. Nossa comitiva, a bordo de veículos 4X4, é composta pelo grupo de Israel (cerca de 12 pessoas), nós três, uma inglesa e um neozelandês.

Já na primeira noite ficamos à margem do grupo majoritário. Assim como eu, Felippe e Zé Renato, os israelenses também viajavam juntos, então nada mais natural que permanecessem juntos (Nota: apesar do distanciamento eles foram cordiais conosco nos poucos momentos em que trocamos palavras).

Sob o frio noturno do deserto, num alojamento em que a eletricidade era cortada depois das 10 horas da noite, deparamos-nos à mesa do jantar com a inglesa e o neozelandês, ambos igualmente deslocados em relação à maioria. Iniciava ali – à base de sopa e vinho – nosso grupinho ocasional, apesar de alguns tropeços no quesito língua.

Novas interações surgiriam na noite seguinte, no remoto e desértico povoado de San Cristobal. Eu terminava a refeição quando três turistas sorridentes ocuparam a mesa ao lado. Curiosamente os recém chegados também não pertenciam à faixa etária dos colegas de Israel, situada em torno de 21 anos. Como havia um cabeludo entre eles perguntei sobre um violão. Nada. Sem qualquer outra coisa mais interessante a fazer, fui dormir.

Horas depois ao acender a luz do quarto quando eu já estava em avançado estado de sonolência, Felippe explicou que eram uruguaios e profundos conhecedores da história do continente. Zé Renato e ele haviam proseado com os hermanos até a madrugada, interação que incluiu tópicos como imperialismo estadunidense, perspectivas políticas da América Latina no século 21 e música popular brasileira. Enquanto eu ouvia o relato fui apresentado a Alejandro, o cabeludo que vivera em Ubatuba por seis meses e que passara em nosso quarto para dar um olá antes de se recolher definitivamente. Na manhã seguinte os uruguaios continuariam a expedição (a rota deles era a mesma que a nossa, porém em sentido inverso).

Aquele episódio teria sido apenas uma passagem agradável fadada ao esquecimento caso não tivéssemos encontrado os uruguaios por acaso em La Paz, dias depois. Começava ali uma forte identificação que aprofundaria a simbologia implícita naquela viagem.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

No Trem da Morte*

*Crônica publicada na edição 1074 do Jornal Observador

Tomávamos um café em Corumbá quando soubemos da morte de Bin Laden. A informação veio por meio de uma piada que envolvia o nome do homem mais procurado do mundo que nos foi contada pelo dono do estabelecimento. Entreolhamos-nos, espantados. O proprietário percebeu.
- Então não sabem que o líder da Al Qaeda foi morto? – perguntou, embora nem precisasse. Era apenas o segundo dia de viagem e já iniciávamos a trajetória rumo a uma dimensão paralela, na qual permaneceríamos alheios ao “mundo real” por um bom tempo.

Corumbá é passagem obrigatória para quem pretende enfrentar o famoso Trem da Morte, que vai até Santa Cruz de La Sierra. Toma-se o comboio em Porto Quijaro, a primeira cidade boliviana depois da fronteira com o Mato Grosso do Sul. Embora estejam em países diferentes, Corumbá e Porto Quijaro parecem pertencer ao mesmo território: o fluxo de turistas é intenso.

Na fronteira demos com a cara na porta: o departamento de imigração boliviano estava fechado. O motivo: a transferência do feriado do Dia do Trabalho para segunda-feira, o que nos forçou a voltar ao Brasil e pernoitar em Corumbá. Carimbados os passaportes no dia seguinte, tomamos um táxi até a bilheteria. Ao contrário das informações colhidas na internet, não fomos importunados por cambistas (os relatos apontavam que os negociantes informais praticam terrorismo psicológico, coagindo o turista a comprar bilhetes sob a justificativa de que não haveria outros assentos disponíveis).

O fatídico Trem da Morte – supostamente reduto de traficantes e bandidos em fuga – é tão perigoso quanto uma maternidade durante a madrugada. Das 11 da manhã até as seis da tarde nosso vagão transportou quatro pessoas: eu, Felippe Aníbal, Zé Renato – ambos companheiros de mochila – e uma senhora bonachona que afirmou ser contrária ao governo de Evo Morales. Os passageiros só começariam a surgir bem longe, na medida em que o trem ia adentrando o interior do país.

Nos vilarejos crianças e adultos disputam a atenção dos viajantes na tentativa de vender água, suco, marmitas e iguarias como chirimoya, uma fruta que até agora não conseguimos identificar. A entonação característica dos vendedores soa como um mantra e chega a ser divertido apreciar aquela confusão oral que se instala a cada parada.

Morte no trem só se for de tédio: o comboio demora mais de 19 horas para superar meros 600 quilômetros. Entretanto o contato com a cultura nativa ameniza esse pequeno detalhe, assim como a vista do pantanal boliviano. À noite a graça é apreciar o céu estrelado. Passei boa parte da noite entoando mentalmente “Trem do Pantanal”, canção que cita a cidade para qual nos dirigíamos e o Cruzeiro do Sul, assim como o famoso meio de transporte.

Chegamos em Santa Cruz de La Sierra, por volta das seis e meia da manhã, com a mesma impressão: a Bolívia é um lugar propício para a quebra de mitos, tabus e estereótipos. Só quando saímos da rodoviária com destino a Sucre descobrimos algo estarrecedor: viajar de ônibus é que pode ser uma tarefa arriscada.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Quase no Topo do Mundo*

* Crônica publicada na edição 1073 do Jornal Observador

Os setenta metros restantes até o cume parecem intransponíveis. Apoiado numa rocha, tomo a pulsação: a veia jugular está a ponto de explodir; respirar é uma tarefa extenuante. Zé Renato, Felippe, os outros brasileiros que integram a excursão, o casal inglês e o guia já estão no topo. Estou só, martirizado pelo vento cortante e pela neve que começa a umedecer minhas pernas.

Em Chacaltaya, pico com 5430 metros de altitude localizado na Cordilheira dos Andes e distante 30 quilômetros de La Paz, é possível chegar de carro a 5300 metros. Mas não é tão simples assim: a estradinha de terra é íngreme, sinuosa e, como tudo na Bolívia, à beira de precipícios. Em alguns pontos, o veículo fica a menos de meio metro do abismo. Emocionante, para não dizer assustador.

Depois de quase dez minutos, retomo o caminho. Além das consequências do ar rarefeito sobre meu corpo, tenho que administrar outra variante: o medo de altura. Nos últimos trinta metros, totalmente cobertos de neve, o caminho se afunila e há desfiladeiros em ambos os lados. Arqueado, com as mãos próximas do solo para o caso de alguma emergência, sigo devagar até o cume.

O clima é de contemplação: todos estão extasiados com a vista. Ao redor, há picos que se sobrepõem às nuvens e a neve nas encostas cria uma textura agradável aos olhos. Também é possível avistar o Titicaca, o lago mais alto do mundo. Poderíamos ficar ali por horas, sem dar uma palavra sequer, apenas degustando aquela paisagem indescritível.

O contexto faz com que eu reflita sobre os últimos acontecimentos. Estamos no 13º dia de viagem. Já passamos por Santa Cruz de La Sierra, Sucre, Potosí e Salar de Uyuni. Vivenciamos experiências inigualáveis e conhecemos paisagens deslumbrantes. Porém a dinâmica da estrada não cria a conjuntura adequada para o processamento de informações e estímulos. Era necessário parar e Chacaltaya propiciou o momento adequado para isso. Pena que por pouco tempo: meia hora depois o guia informou que era hora de partir.

Depois da sessão de fotos, iniciamos a descida. Uma pequena hesitação no trecho mais perigoso do trajeto e já estamos caminhando normalmente até o ponto de apoio.

O problema agora será enfrentar de novo a estradinha tosca até La Paz. E o pior: morro abaixo.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Odisseia II*

*Crônica publicada na edição 1066 do Jornal Observador.

São 15h30 e estamos na fila que dá acesso ao estádio debaixo de um sol impiedoso. Will faz uma análise sociológica da situação.
- É tranquilo, Peruca. Todo mundo aqui pagou caro pelo ingresso e o pessoal só quer curtir o som dos caras. Por isso não tem tumulto algum: ninguém vai se meter a besta e estragar a noite. Aqui todos torcem pelo mesmo time – avalia.

O argumento do nosso amigo mineiro me pareceu bastante convincente. Desencano.

A fila anda devagar. Enquanto isso observo as “figuras” que vão a esse tipo de evento. É obvio que não seria muito diferente disso – todos nós vestimos camisas de banda de rock – mas tem cabeludo com jaqueta de couro e coturno mesmo com a temperatura batendo a casa dos 34 graus. Mas a excentricidade fica restrita ao plano da vestimenta: nada de desordens, drogas ou qualquer tipo de violência, diferentemente do que julgam os (muitos) ignorantes e tapados desse Brasil varonil.

O policial é implacável na hora da revista pessoal. Confiscou o meu desodorante rolon novinho. O Zé Willian teve mais prejuízo: tomaram a colônia que ele trazia na bolsa. O Alex ficou sem a chave de abrir pcs. Tudo teve que ser jogado num latão, para a alegria dos catadores de plantão. Um sujeito na fila me dirige a palavra.
- Rolon agora virou arma? – questiona com ironia.
- Para um governo fascista como esse que domina nosso estado parece que sim – respondo. Ele retribui com um sorriso largo. O policial ignorou a crítica; deve ter pensado que se tratava de um elogio.

16 horas. Alex, Zé Willian, Will, Roberta, João e eu nos posicionamos a uns 10 metros da grade. Ótimo local. O problema é que não podemos dar sopa por aí e perder lugar: última saída para banheiro e aquisição de água e sanduíche para não morrer de inanição até o final da maratona.

19 horas. Boa nova: o Cavalera Conspiracy abre o show do Maiden. Bem interessante, para não dizer engraçado, ver Max e Igor Cavalera fazendo cover deles mesmos. Obviamente são as músicas do Sepultura que mais levantam a galera. Previsivelmente eles fecham com Roots Bloody Roots: a plateia vibra. O show revigora o ânimo de todos nós, já esgotados fisicamente.

Surpreendentemente, as luzes se apagam novamente às 21 horas em ponto. Não pode ser: a apresentação está prevista para ter início às 21h30. Os telões são ligados: um vídeo de introdução traz a concepção do novo álbum. São eles. Indescritível a emoção. Agradeço por estar vivo e ter a chance de presenciar aquele momento histórico.

Com a mesma pontualidade do início, o Iron Maiden deixa o palco exatamente às 23 horas. Com a alma lavada, é hora de dar adeus aos nossos amigos mineiros e pegar o metrô mais próximo. Cansaço físico e memórias recentes se alternam como assuntos predominantes em nossas conversas.

1 hora da manhã. Estamos de volta ao terminal Barra Funda mais de 24 horas depois. Acontece que o nosso ônibus só sai às 7h30 da manhã. Não temos outra escolha a não ser tirar um cochilo ali mesmo no chão do terminal, um dos lugares mais insalubres do mundo (tirando o plenário do STF). Mas, pela terceira vez, sou acordado pelo guardinha: “Moço, não pode dormir aqui”. Do outro lado um mendigo dorme em paz há mais de três horas.

Estamos de volta ao interior.
- Zé, apesar de toda a canseira e correria, valeu a pena, bicho. Faria tudo de novo – comento ao saltarmos do ônibus.
- Verdade, Peruca? Então vamos articular nossa ida ao show do Ozzy na semana quem vez? – pergunta, sério.
Finjo não ouvir o que ele diz.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Odisseia*

*Crônica publicada na Edição 1065 do Jornal Observador

Terminal Barra Funda. Sábado, 26 de março, 5h45 da manhã.
- Zé Willian: tem um negócio que você precisa conhecer – digo com empolgação ao descermos do ônibus.

Trata-se de um banheiro gratuito localizado no outro lado da rodoviária que só descobri durante minha última passagem pelo local.

- O banheiro ao lado da área de desembarque é, na verdade, uma armadilha para caipiras desatentos – continuo. – Você nunca mais vai precisar gastar R$ 1,50 toda vez que chegar apurado ao terminal. Rimos, embora eu esteja falando sério.

Depois de alguns pães de queijo e um copo de leite para recompor as energias, tomamos o metrô até a Praça da República. O objetivo: encontrar o Alex, que já estava em São Paulo à nossa espera. A missão: chegar ao Morumbi para ver o Iron Maiden ao vivo e a cores.

São 6h30 da matina e não há nenhuma movimentação. Parado demais para uma cidade que nunca dorme. O jeito é dar um rolê pelo centro histórico para matar o tempo: Teatro Municipal, Viaduto do Chá, Vale do Anhangabaú, Largo São Bento, Santa Ifigênia (a grafia está correta), cruzamento da Ipiranga com a São João (não sei o que o Caetano viu ali).

Mais tarde, já em horário comercial, encontramos o Alex na Galeria do Rock e aproveitamos o momento para vasculhar o famoso point, cenário de batalhas violentas entre punks e metaleiros na década de 80. É surreal visitar lojas antológicas que alimentaram os apreciadores de boa música numa época em que discos clássicos eram escassos e a importação era cara e difícil. Cabeludos com camisa do Maiden dominam o ambiente. As lojas também aproveitam a oportunidade para faturar com a venda de todo tipo de produto relacionado à banda.

11 horas. O estomago começa a roncar. É hora de achar o caminho até o Morumbi. Mas antes uma fotografia na fachada do prédio que oportunamente ostenta uma imensa faixa vertical que dá boas vindas ao Iron Maiden.

No ônibus, uma surpresa agradável: trombamos três mineirinhos feras. João, sua namorada Roberta e Will, todos de Poço Fundo, sul de Minas. Os três também saíram de casa por volta da meia-noite e vão enfrentar uma odisseia até a apresentação de uma das maiores bandas de metal ainda em atividade. A identificação é imediata. Apenas uma coisa nos diferencia: a experiência. Eles já viram AC/DC e foram a outros shows do Iron. Uma ótima notícia para três caipiras amantes de heavy metal que nunca foram a um grande concerto de rock.

Saltamos no cruzamento da Francisco Matarazzo com a João Saad (acho que é isso). Daqui para frente o trajeto será feito a pé. Antes, pausa para uma celebração milenar: matar a fome em grupo no fast-food que vende esfirra a preço de banana.

12h30. Retiramos os ingressos na bilheteria sob um sol escaldante. A movimentação ao redor do estádio é intensa: há trânsito, cabeludos, vendedores ambulantes e policiais militares por toda a parte. O calor é insuportável, haja garrafinha de água. Acomodamos-nos à sombra de uma árvore para jogar conversa fora e matar o tempo. O celular do Zé Willian toca “The Wicker Man” para amenizar a fadiga e preparar a alma.

É melhor assim: os portões serão abertos às 15 horas e o show deve ter início às 21h30. O dia será longo. A noite também. (Continua na próxima edição).

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O Duelo*


*Crônica publicada na edição 1059 do Jornal Observador

Ainda criança, Crispim deu os primeiros sinais de que gostava de viola. Sua vida era andar pelo vilarejo tocando um pedaço de pau, que não largava nem para comer.

Isso quando comia. Porque Crispim era órfão de pai e mãe e vivia apenas daquilo que lhe era dado pelas senhoras daquela comunidade rural. Os maridos não gostavam: achavam que dar esmola ao pobre coitado faria dele um vagabundo. E, à medida que o menino ia crescendo, a hostilidade dos patriarcas crescia junto.

Chegou à adolescência com um instrumento de verdade, doação de um ferreiro aposentado. Era uma violinha bem ordinária que não segurava a afinação. Mesmo assim, o jovem se dedicava integralmente ao instrumento e chegava a passar dias isolado na mata, num rancho que erguera sozinho à beira do córrego.

Quando a Folia de Reis passava coletando alimentos para a festa do Divino, Crispim acompanhava os tocadores. Nas noites de calor, ele parava em um ponto da calçada onde era possível ouvir rádio. Quando o aparelho de uma residência era desligado, ele vagava pela cidadezinha à procura de outra casa que estivesse com o utensílio em uso. Decorava as melodias que ouvia para reproduzi-las no dia seguinte. Passou a entreter os frequentadores dos bares e a viver das gorjetas dadas por eles. Isso lhe garantiu ainda mais a oposição dos cidadãos de bem.

No final da temporada de chuvas, Crispim sumiu do mapa. No início ninguém deu muita atenção. Mas depois que o violeiro não aparecera nem para acompanhar a Folia de Reis, a população ficou alarmada com o desaparecimento. Uns diziam que ele havia sido morto, outros diziam que ele tinha endoidecido.

Voltou homem feito, com chapéu e sobretudo, bem diferente do jeito maltrapilho do passado. Nada de gorjetas em bares: Crispim agora arrancava dinheiro grosso dos fazendeiros, que admiravam os detalhes prateados de sua nova viola e ensandeciam ao ouvi-lo tocar. As mulheres se apaixonavam por ele. Era o maior violeiro da região.

Fez fortuna em pouco tempo. Agora diziam que ele havia feito pacto com o Demo, que não era possível um sujeito como ele, sem eira nem beira, enriquecer da noite para o dia. Seu jeito misterioso só reforçava essa impressão.

A cisma foi confirmada quando um violeiro desconhecido apareceu na cidade. Igualmente virtuoso e bem afeiçoado, o desconhecido intimou Crispim para um duelo em praça pública.

Sexta-Feira Santa, à meia-noite. Pouca gente teve coragem de assistir à peleja. Mas quem viu conta que Crispim foi derrubando, um a um, os ponteios ameaçadores do adversário, de modo que o estranho chegou ao final do duelo com apenas duas cordas. O golpe de misericórdia veio quando Crispim tocou “Saudade do Matão”, fazendo a pequena plateia chorar. Derrotado, o forasteiro enfiou o que sobrara da viola no saco e deixou o vilarejo.

Há quem garanta que era o próprio Cão, arrependido por ter dado tanto poder ao jovem instrumentista, que viera destruir a reputação de Crispim e tomar-lhe a alma.

Depois desse episódio, não se soube se o Diabo voltou a fazer pacto com violeiros.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Uma Imagem*

* Crônica publicada na edição 1057 do Jornal Observador

Ao abrir a caixa de emails me deparo com a instigante informação: “Postei a foto do show no Orkut. Dê uma olhada lá”.

Abro outra janela e ingresso no site. Na página inicial, um recado recente de outro contato questiona algo a respeito de uma viagem em grupo ainda em fase de planejamento. Respondo, postando as parcas informações que obtive até o momento.

Enquanto isso, alguém que não conheço me chama no MSN. “Add vc....tc hj?”. Não entendo o linguajar e, mesmo que tivesse entendido, não poderia responder: “Ow brow ... komo foi o fds?” chama outro contato cuja relação existe apenas no plano virtual, pois ele sequer olha na minha cara quando nos encontramos na rua.

Uma terceira janela se abre no programa de trocas de mensagens instantâneas. Rapidamente, mudo meu status para “Invisível”. Permaneço imóvel na frente do pc, com as mãos suspensas, como se o ruído produzido pelo teclado pudesse denunciar minha fuga.

Segundos depois tento retomar a tarefa original. Mas não é tão fácil assim. Nessa altura, aparece um quarto interlocutor que, não sei como, descobre que estou ali “só na coruja”. É um colega de escola que quer saber como estou. Como se quisesse me provocar, ele só fala por meio de emoticons, aquelas caretinhas animadas. Ridículo, além de incompreensível. Só entendi que ele tem um filho e que mora no Paraná. Ou seria no Amapá? Depois ele me envia um link do grupo de pagode dele e exige que eu comente os vídeos. Ignoro solenemente. – Pode deixar, vejo depois. É que minha internet está bichada hoje – digo, aliás, teclo, sem ficar vermelho.

Foco. Vou tentar alcançar a malfadada foto, já estou impaciente. Será que é alguma imagem do show do Paul em solo brasileiro? O sujeito tinha dito que iria, mas achei que fosse conversa fiada.

Porém caio na besteira de passar antes no Facebook. O meu perfil é recente e ainda não aprendi a mexer direito (Sou um homem analógico, como diria meu amigo Vinicius Quesada). Mesmo assim me divirto fuçando nas ferramentas disponíveis.

Aquele contato incômodo me chama de novo no MSN. Respondo ou não? Será que ele sabe que estou fingindo? Acho que o status “Disponível” no canto superior esquerdo do Orkut me denunciou. Vou ter que usar o velho álibi “Desculpe, é que a net caiu quando eu ia responder” e ainda correr o risco de vê-lo regulando aquele pedal de wah-wah que eu sempre peço emprestado.

Pra evitar outra interrupção ou distração, fecho todas as janelas, inclusive a do Orkut. Esse cara deve ter umas mil fotos no álbum e não seria fácil encontrá-la. A solução é acessar o link que veio no email, o que vai me levar diretamente para a imagem pretendida.

Levo o cursor até lá e click. Azar: é vírus.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Em 2011 prometo que...

*Crônica publicada na edição 1053 do Jornal Observador

Em 2011, prometo que vou cortar os excessos. Uísque só no almoço e após o jantar. Nada de bebida alcoólica no café da manhã. Além disso, vou diminuir o cigarro: três maços ao dia bastam. Deixarei o sedentarismo de lado e praticarei atividades físicas de alto impacto como RPG e Dama. Ingressarei na aula de ioga e frequentarei o culto daquela igreja neopentecostal que abriu numa garagem perto de casa.

É tempo de celebrar a paz, por isso prometo ser uma pessoa mais tolerante em 2011. Não vou mais brigar em bailes sem antes ouvir os argumentos do meu desafeto. Prometo também não lesar tanto o meu sócio no próximo negócio e não pagar propina tão alta àquele político.

Prometo me empenhar no propósito de conhecer melhor o Brasil. Para tanto, vou me debruçar sobre a obra dos verdadeiros mestres da literatura brasileira: Paulo Coelho, Augusto Cury e Zíbia Gasparetto. Quebrarei todos os meus discos do É o Tchan e colocarei no lugar o disco novo do Daniel e toda a discografia do padre Marcelo. Pensando melhor, padre Marcelo é coisa do passado. A moda agora é o padre Fábio de Melo, aquele com pinta de galã que aparece em todo programa de auditório.

É isso mesmo, prometo me esforçar para entender nosso país. Não vou meter o pau no Congresso a torto e a direito sem antes me certificar dos fatos e prometo ainda tentar entender por que o governo, cujo mandatário emergiu do meio sindical, não fez a reforma agrária; por que o governo provisório durou 15 anos e por que um cara do naipe do Sarney ainda é capaz de vencer eleições.

Vou procurar me informar com mais profundidade a respeito das contradições de nossa sociedade. Por que a missa de sétimo dia é rezada no sexto dia? Por que temos que vestir branco no Reveillon? Por que pagamos o seguro obrigatório? Por que Brasília foi construída uns 600 quilômetros pra lá de onde Judas perdeu as botas? Por que acender vela no Finados ou desejar “tudo de bom” no Natal a quem você odiou durante o ano todo?

Prometo ainda tentar entender por que o Tiririca foi eleito, embora nesse caso eu já desconfie da resposta: trata-se da institucionalização da palhaçada na política brasileira. De qualquer forma, vou dar uma passadinha no Google para ter certeza.

Por fim, prometo não fazer promessas para 2011.