terça-feira, 27 de julho de 2010

A Manchete*

*Crônica publicada na edição 1031 do Jornal Observador

Mal o editor havia deixado a redação e Aroldo já estava rodeado pelos colegas de trabalho.
- Já virou pessoal, cara. Acho que você não devia permitir isso - indignou-se um deles.
- Se precisar depomos a seu favor - disse o outro.
- Ou vamos articular uma greve geral - exasperou um terceiro.

Era a segunda vez no dia que Aroldo era esculhambado em público pelo editor. O superior hierárquico exigia que o jovem repórter “se virasse” para preencher as páginas do noticiário policial, como se o novato tivesse poderes para empreender tal façanha.
- Não tenho culpa que fundaram esta cidade no local mais frio do país onde nada acontece nessa época - disse Aroldo tentando disfarçar o nervosismo com um sorriso amarelo.

Fez um gesto para que todos voltassem às suas mesas: iria dar um jeito na situação, que ficassem tranquilos. Sentou, suspirou demoradamente enquanto esfregava o rosto com ambas as mãos. Talvez estivesse sendo negligente ao não angariar a confiança irrestrita do pessoal da polícia. Poderia se esforçar mais: assim obteria furos, produziria grandes matérias exaltando a corporação até chegar ao ponto de ser convidado para acompanhar toda grande operação. E o mais importante: garantiria sua subsistência ao superar as diferenças com o editor e talvez ficasse até envergonhado ao ser elogiado pelo superior diante dos colegas.
- Serei o mais badalado repórter policial – pensou alto demais chamando, sem querer, a atenção dos companheiros de labuta.

E colocou-se à execução de seu plano após o expediente. Disparou telefonemas, usou e abusou da retórica, mas só obteve informações que renderiam no máximo uma nota.

Olhou para a máquina de escrever: a folha continuava em branco. A matéria que traria sua redenção insistia em não existir. Verificou a hora: em pouco tempo, o editor estaria em seu plantão para averiguar a produção e o esfolaria vivo.

Abruptamente, recostou o corpo sobre a cadeira e soltou uma breve gargalhada. Assim que ouviu passos no corredor, correu ao encontro do editor. Chamou-o no canto e revelou que tinha uma grande história na mão.

Pediu que o sujeito o acompanhasse até a cozinha e ainda no corredor desferiu-lhe um golpe de punhal que lançou o superior ao chão. O corpo moribundo ainda sacolejou por alguns instantes até ficar totalmente inerte, esvaído em sangue. Aroldo certificou-se de que não deixara vestígios e telefonou para a polícia, informando que ouvira um barulho estranho no prédio.

Já estava com a matéria quase pronta quando a sirene ecoou nos arredores.
- É manchete na certa, teria dito o editor - sentenciou em voz alta ao ler o texto sobre o assassinato que agora era ocultado numa gaveta da escrivaninha.

E saiu correndo para auxiliar os policiais, informar que vira um homem estranho rondando o prédio e chorar copiosamente assim que deparasse com o corpo dilacerado do editor no chão.

sábado, 3 de julho de 2010

O Encontro*

*Crônica publicada na edição 1029 do Jornal Observador

Quando a senha 14408 foi anunciada nos alto-falantes, todos os olhares se voltaram para o saguão de entrada. Um anjo cutucara o outro.
- Aposta é aposta, não vai pular pra trás dessa vez. Seja homem, ou melhor, seja anjo – ressaltou com certa rispidez.

A gravidade da situação fazia sentido. A pessoa por trás da senha era José Saramago, morto naquela manhã, e a aposta especulava como seria sua recepção no Palacete Celestial.

De terno desabotoado, o escritor surgiu no corredor iluminado reparando nas esculturas que decoravam o palácio. Arrumou os óculos quando parou em frente à La Pietá, de Michelangelo.
- Ora pois....mas esta obra não estava até ontem na Basílica de São Pedro? – pensou alto, já desconfiando da fajutice.
- É uma cópia barata, José, eu sei. Mas é que o translado da Terra para o Céu tem causado uma série de problemas – disse o Deus assim que a porta do salão principal se abriu. – Cada vez que eu dou sumiço numa obra de Picasso os humanos ficam obcecados em encontram um bode expiatório – apontou o Senhor.

Assim que Saramago entrou e a enorme porta de madeira se fechou, os anjos que despachavam na ante-sala deixaram os seus postos e colaram os ouvidos na parede. Ninguém queria perder uma cena sequer do encontro histórico.
- Desde a vinda de João Paulo II que eu não via um tumulto desse porte na repartição – apontou um dos anjos apostadores.
- É um fato – continuou o outro sem desencostar um milímetro da porta maciça. – Nem Lennon, que já chegou se comparando ao Filho do Homem, bagunçou tanto o coreto.

Cerrados no salão principal, os cavalheiros trocaram cordialidades como velhos conhecidos. Em seguida diminuíram o tom.
- É pra evitar vazamento na imprensa – apontou Deus do alto de sua sabedoria. – Fui obrigado a pedir segredo de justiça no seu caso, José.
Saramago declarou-se surpreso com o assédio.
- Só espero que eles não leiam meus livros no expediente.
- De maneira alguma. O Estatuto dos Servidores Celestes proíbe, em seu artigo quarto, livros de auto-ajuda e obras de um certo escritor português radicado na Espanha – emendou Deus.

Gargalhadas abafadas foram ouvidas por todo o prédio. Um dos arapongas tentou esquivar-se mas foi surpreendido pelo outro anjo: havia perdido a aposta.

Recomposto, o Senhor solicitou que o senhor assinasse no local indicado pelo xis.
- Seu visto permanente está concedido. Com ele, você poderá inclusive trabalhar para custear sua estadia – informou Deus num tom mais professoral.

Saramago botou o documento no bolso interno do paletó e levantou-se. Despediu-se com um aceno. Já estava com a mão na fechadura quando foi novamente chamado à mesa.
- José, me faça cá um favor: autografe esse “exemplar” de O Evangelho Segundo Jesus Cristo. É o seu manuscrito original. Deu um trabalhão danado mas eu consegui resgatá-lo – disse Deus meio vexado.

Pouco tempo depois o Le Monde traria o furo: “Ladrões furtam originais de O Evangelho Segundo Jesus Cristo”.