segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Get Back*

* Crônica publicada na edição 1050 do Jornal Observador

Paul foi acordado por um telefonema suspeitíssimo naquela manhã.
- Macca, estamos voltando esta tarde. Nos encontramos no Abbey.

Ainda sonolento, Paul afastou o telefone do ouvido e olhou assustado para o aparelho enquanto aquela voz familiar continuava a balbuciar alguma coisa do outro lado da linha.
- Que diabos significa isso? - pensou. Enfim retornou o utensílio à orelha depois de alguns segundos mas o seu interlocutor já havia desligado.

Tomado por um misto de estupefação e raiva, Paul não podia crer no que acabara de ouvir. Precipitou-se em retornar a ligação mas recordou que já não tinha o telefone do ex-companheiro de banda desde que John se mudara com Yoko para Nova Iorque.

Imediatamente ligou para a casa de George com o objetivo de checar a história. Em seu íntimo, esperava que tudo não passasse de um trote bem feito. Porém a demora do guitarrista em atendê-lo evidenciou que algo estava errado.
- Você vai compactuar com uma coisa dessas depois de tudo que passamos? - bradou Paul.
- Se eu fui capaz de esquecer nossas magoas pessoais, por que não perdoaria minhas diferenças com John? - disse George enfático, porém na defensiva. Ao ligar para a casa de Ringo, Paul fora informado que o baterista havia saído para um compromisso desconhecido.

A coisa não poderia estar tão fora de controle. Depois de anos de mágoas veladas e distanciamento deliberado, John aparece com uma cacetada dessas.
- Será que esses filhos da mãe ainda precisam de mais dinheiro? - questionou-se na tentativa de encontrar um motivo para tudo que estava vivendo naquela manhã maluca.

Acusado na época de usar o fim da banda para vender discos mesmo diante de seus esforços solitários para evitar o desfecho conhecido por todos, Paul agora era pego de surpresa. Ainda mais em se tratando de John, cujo temperamento difícil foi o principal responsável pelo fim da banda.

Talvez John tivesse o propósito de dar novo fôlego às rusgas antigas ou atingi-lo por outras vias, principalmente agora que sua carreira solo estava consolidada. Pior ainda, Paul acabava de iniciar as gravações de seu novo álbum e a novidade seria uma tentativa de desestabilizá-lo. A provocação era clara: John jamais o chamara de “Macca”. Estava aí um sinal do sarcasmo do velho companheiro de banda.

Paul vestiu o paletó e seguiu para o Abbey Road sem avisar ninguém. Tinha em mente a urgência de evitar que qualquer rumor chegasse à imprensa. Se fosse rápido, talvez convencesse os ex-companheiros a não embarcar em mais uma ideia narcisista e egocêntrica de John. Pensou em passar antes no escritório de seu advogado mas achou que assim levantaria especulações desnecessárias.

Entrou no estúdio pela porta dos fundos para não levantar suspeitas. O prédio estava em silêncio e não havia ninguém no escritório. Caminhou na ponta dos pés para tentar captar qualquer movimentação estranha até se aproximar do estúdio principal.

Pelo vidro da sala de gravação, Paul pôde ver a cabeça balançante de Ringo sentado à bateria. George, como sempre, estava quieto num canto empunhando sua Strato surrada. John, situado bem no meio da sala, tocava sua semi-acústica enquanto cantarolava o refrão de “Don´t Let Me Down”. À sua esquerda, um baixo Hofner acomodado num pedestal aguardava seu instrumentista.

De súbito, McCartney sentiu um toque em seu ombro. Era Linda que o acordava para anunciar que Lennon acabara de ser assassinado em frente ao edifício Dakota.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mudança*

*Crônica publicada na edição 1048 do Jornal Observador

Recostado lateralmente no mourão da porteira, pude observar o terreiro vazio. O ciscar interminável das galinhas, o pio desesperado dos pintinhos perdidos e a coreografia do galo-rei já não existiam mais. Dali pra frente, o pomar seria de propriedade exclusiva dos pássaros. O jambeiro, que por diversas vezes testemunhara o nascimento de crônicas e a leitura de clássicos da literatura universal, não voltaria a ver este humilde adepto das letras deitado na rede fixada em seu tronco.

Ainda é perceptível o ruído do caminhão que acabara de passar por mim. Transporta móveis, eletrodomésticos e outras quinquilharias inúteis acumuladas durante todos esses anos. Simbolicamente fui o último a deixar o sítio. Logo eu, que hesitara em estabelecer residência ali dez anos antes.

A nova residência, situada a cerca de 400 metros em linha reta, pode ser vista dali. Apenas um pequeno vale separa a propriedade da zona urbana. Ainda assim, as coisas devem mudar um pouco, já que será difícil ouvir Led Zeppelin no volume máximo ou tocar guitarra com o amplificador no talo sem despertar a ira dos vizinhos.

Contudo, a proposta é refazer o pomar pois o quintal é igualmente enorme. Mas dessa vez utilizarei mudas compradas. É mais fácil e prático do que fazer eclodir as sementes para só depois plantá-las. Além de gerar frutos, sombra e atrair pássaros, as futuras árvores terão a responsabilidade de acomodar a velha rede, agora esquecida num canto qualquer da nova morada. Milho já tem. É uma pequena roça que deve garantir – neste ano ainda – matéria prima para a produção de pamonha, bolo de milho e curral. Não se anime, é tudo em escala familiar.

Penso no processo de readaptação em ambiente urbano. Isso porque o meu quarto está voltado para a rua e não será tão fácil, pelo menos no início, ignorar o fluxo de ônibus e veículos quem tem início por volta das 5 da manhã. Isso sem levar em consideração o movimento em plena madrugada de transeuntes barulhentos. Talvez seja castigo: por muitas noites andei em grupo pelas ruas com o violão em punho celebrando a vida. Não vou negar que ainda faço isso.

Por outro lado, minha nova janela vai garantir luminosidade durante a maior parte do dia, perfeito para a leitura. No momento finalizo “A Sangue Frio”, de Trumam Capote, um clássico do jornalismo literário.

“E vou viver as coisas novas que também são boas, o amor, humor das praças cheias de pessoas. Agora eu quero tudo, tudo outra vez”.

Sem hesitar, está claro que Belchior tem razão.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O "Causo" da Carteira*


*Crônica publicada na edição 1046 do Jornal Observador

Venâncio, o experiente capataz da fazenda Nova Esperança, surpreendeu-se com o que acabara de ouvir no galpão.
- Juquinha, prepare um cavalo. Irei para a lida com vocês hoje – avisou coronel Rolando, o imponente proprietário daquelas terras.

O anúncio foi recebido com apreensão pelo capataz, que continuava a encilhar seu animal em silêncio.
- Vamos pra “Água da Onça” hoje? – perguntou coronel Rolando.
- Não coronel. A lida hoje é no “Lajeadinho” – respondeu Venâncio, para a surpresa dos campeiros.

Era mentira. A proposta inicial era definitivamente a “Água da Onça”, porção da fazenda de difícil acesso que ficava a uns seis quilômetros da sede. A região era ocupada pelo melhor gado da propriedade: quase duas mil cabeças da raça nelore. Já “Lajeadinho” era um local bem próximo, cujo rebanho era composto por bezerros recém-desmamados, de fácil manejo.

Sem qualquer hesitação aparente, os outros peões – alguns deles já sobre a montaria – entenderam o motivo da mudança. Estava claro que a ida do coronel dificultaria o desempenho das atividades já que o patrão era conhecido por manter um trote muito aquém dos campeiros. Por outro lado, o estado de saúde do coronel também preocupava Venâncio.
- E se esse homem morre por essas barrocas – pensou com seus botões. Porém não ousou confrontar o patrão. Tentar dissuadi-lo seria bater em ferro frio.

Os cavaleiros cruzaram o “Vale dos Açudes” quando o sol ainda não tinha despontado completamente. Ali havia dezenas de lagos cercados por um imenso taboal e era comum encontrar durante a noite pescadores de traíra, apesar das inúmeras placas com o alerta “Propriedade Particular – Proibido Caça e Pesca”. Embora vigorasse a determinação, os campeiros só perturbavam intrusos surpreendidos com redes ou tarrafas.

Em pouco mais de três horas, todo o trabalho fora cumprido e tanto o patrão, como os campeiros, voltaram felizes para a sede. O coronel por ter espairecido um pouco; os peões por ter não terem o azar de vivenciar o patrão sofrer outro ataque do coração em pleno mato.

Mas, já nas proximidades do galpão, a vibração positiva foi cortada por um grito angustiado: coronel Rolando perdera sua carteira durante a lida. Imediatamente, os peões retomaram com o patrão todo o trecho percorrido durante a empreitada.

Nem mesmo a convocação das mulheres e dos filhos de todos os empregados da fazenda foi suficiente para encontrar o artefato perdido. Já era quase noite quando o coronel Rolando ordenou que os campeiros ateassem fogo nos piquetes pelos quais haviam passado, para o espanto dos colonos da fazenda. Em silêncio, julgavam desnecessária uma atitude tão extremista como aquela. Até então o patrão era visto como uma pessoa razoavelmente boa de coração, mas aquela ordem trouxe à tona um homem até então desconhecido, um rancoroso, que temia que sua carteira fosse encontrada e “omitida” por algum de seus empregados.

Ainda hoje, quarenta anos depois da morte do coronel Rolando, há relatos diversos de pescadores que se aventuram à noite pela região. Um deles dá ciência de que, em noites de lua cheia, é possível avistar no horizonte a silhueta de um homem rechonchudo e agoniado que procura algo entre as ramadas do capim colonião.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Considerações de um deportado*

* Crônica publicada na edição 1042 do Jornal Observador

Preparar uma viagem internacional é algo que demanda tempo, disposição e muito planejamento. Acontece que, por conta da euforia natural antes do embarque, muitas vezes esquecemos de acrescentar à mala um item imprescindível: a capacidade de burlar os imprevistos. Sem ela, a viagem dos sonhos poderá se transformar – literalmente – num pesadelo.

Que fique o alerta porque este que vos fala – além de azarado de plantão – já sabe há tempos que trabalhar com as piores probabilidades é sempre um bom negócio.

Foi dentro dessa perspectiva que preparei minha primeira viagem internacional. O propósito era passar uma temporada em Londres, passagem obrigatória de bandas como Led Zeppelin, Black Sabbath e Iron Maiden. Lá eu poderia, com um pouco de sorte, trombar o Clapton fazendo sua tradicional caminhada nos arredores da capital inglesa ou talvez surpreender Jimmy Page tocando uma variação de Dazed and Confused em um pub qualquer.

Mas eis que no meio do caminho tinha uma pedra chamada UK Border, a temida autarquia inglesa especializada em torrar o saco e tirar-lhe o resto de paciência que sobrara depois de um voo de 12 horas na classe econômica. Composta por senhores bonachões e senhoritas centenárias, a UK Border é, na verdade, uma sucursal do inferno estabelecida na Terra.

Com toda a discrição característica dos ingleses, o oficial da imigração vai educadamente solicitar seu passaporte e perguntar quanto tempo você pretende ficar em Londres. Mas não se iluda, trata-se apenas da senha para tornar sua viagem inesquecível, principalmente se não forem com a sua cara ou acharem que o seu corte de cabelo já expirou nos anos 70.

Há uma única coisa boa na sala de espera do serviço de imigração: a máquina que serve todo tipo de café e água. E tudo de graça. Além disso, a cada 15 minutos um funcionário te oferece sanduíches e outras guloseimas. Mas, com o passar do tempo, você perceberá que não se trata apenas de mais uma demonstração da hospitalidade britânica. O verdadeiro intuito é te ajudar a matar não só a fome, mas principalmente o tempo já que você vai ficar por ali no mínimo umas 6 horas.

Depois de te submeterem a uma bateria de perguntas sem o menor nexo, você será solenemente informado que sua entrada no país não foi aceita, apesar de você portar toda a documentação necessária e ter libra suficiente para uma estadia três vezes maior que a pretendida. (Não adianta bancar o espertinho: caso tenha dinheiro de sobra, eles vão achar que você terá a brilhante ideia de “esticar” o passeio). Como se vê, o critério da imigração é não ter critério.

Por último, você será conduzido ao primeiro avião com destino ao seu país de origem por um simpático funcionário que vai te perguntar – ao pé do ouvido e sorrateiramente – se toda mulher brasileira anda de fato seminua pelas ruas.

Trabalhar com as piores probabilidades, como eu já disse, além de evitar a frustração garante sempre a existência de um plano B. Londres never more. América Latina, here I go.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Ganhador da Loteria*

* Crônica publicada na edição 1039 do Jornal Observador

A pequena cidadezinha do interior acordou mais cedo naquele domingo com a notícia de que o novo ganhador da loteria pertencia àquele chão.

Na padaria, nas esquinas e nos botecos não se falava em outra coisa e cada morador especulava – cada qual com uma metodologia própria – sobre quem seria o novo milionário.
- Fulano comprou um carro novo, deve ser ele o ganhador – dizia um.
- O senhor está enganado, compadre. O carro foi comprado na semana passada e o sorteio só foi realizado ontem – corrigia o outro antes de voltar o raminho de baquiara ao canto da boca.

Outro morador trazia indícios de que sicrano havia sumido da cidade após ter colocado a casa ou o sítio à venda. Mais tarde a versão caia por terra ou ganhava novos desdobramentos na boca do povo.

Apesar das divergências todos concordavam em um aspecto: logo mais o felizardo se apresentaria publicamente, afinal todos se conheciam naquela pequenina e aconchegante cidade.

Mas aos poucos a coisa foi tomando outro rumo. Já beirava às 11 horas da manhã e o ganhador da loteria ainda não havia aparecido. A curiosidade começava dar lugar à hostilidade provinciana.

Era meio-dia quando o prefeito da cidade decidiu fazer um pronunciamento condenando a omissão daquele milionário local que insistia em não dar as caras.
- Onde está o espírito comunitário desse cidadão? Ele está desrespeitando a unidade da nossa população – discursou o alcaide do coreto da praça. Tomados por uma profunda indignação, os moradores aplaudiram efusivamente o prefeito.

Ao final do ato, a população decidiu que seria formado um comando para caçar o rico silencioso. A busca partiria de uma pista que apontava um senhor aposentado morador da área rural como sendo o ganhador recluso.

Munidos de tochas, os inquiridores aproximaram-se da casa suspeita ao anoitecer. Horrorizado com a cena incomum que se apresentava através da janela, o velho fugiu pelos fundos e refugiou-se na roça de milho.
- O povo estava certo: a voz do povo é a voz de Deus – gritou o líder do grupo, ordenando que capturassem o fugitivo. Os capachos correram cumprir a missão.

Enquanto isso alguém em algum lugar distante dali descobria-se como o mais novo milionário ao conferir o resultado da loteria sorteada na noite anterior.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Será que faz mal com pinga?*

* Crônica publicada na edição 1037 do Jornal Observador

Tio Ranulfo chegara bêbado outra vez. Como se não bastasse tomar pinga contrariando a orientação médica, o velho anunciava com tanta veemência que iria dar cabo da própria vida que decidi agir.

Eu já ouvira a ameaça anteriormente e estava claro que era apenas uma das artimanhas do velho só para me encurralar. Na primeira vez que ele proferiu tal intenção, eu - um tanto quanto assustado - optei por dissuadi-lo da ideia por meio da retórica. Porém, percebi ao longo do tempo que tudo não passava de um puro e simples blefe.
- Quem quer se matar de verdade não anuncia – analisei com meus botões.

Era chegada a hora de passar uma descompostura no velho e querido tio.

Munido dessa constatação, preparei um plano mirabolante e distribui sobre a pia da cozinha o necessário para o sucesso da empreitada: um copo de água e dois comprimidos efervescentes de Sal de Fruta.

Por volta das 11 da noite ouvi tio Ranulfo entrar pelo corredor já resmungando depois de permanecer por várias horas no bar. Rapidamente me pus de pé e corri até a cozinha para simular uma atividade qualquer. O velho entrou e, assim que me viu debruçado sobre a pia, iniciou a ladainha: estava cansado da vida e iria se matar.

De súbito, entrei em cena.
- Tio, já deixei tudo preparado para não adiar o sofrimento do senhor. Tome esse veneno aqui, é tomar e morrer – afirmei, sério, oferecendo-lhe o copo que borbulhava ferozmente a ponto de transbordar.

Tio Ranulfo estacou, arregalou os olhos e engasgou. Eu insisti.
- Toma isso aqui tio, é veneno pior do que pó de broca. O senhor não quer se matar? É tomar e morrer – reiterei.

O velho fixou o olhar no copo transbordado que continuava em minha mão. Por um momento, um silêncio profundo tomou conta da cozinha até que tio Ranulfo perguntou apreensivo.
- Escuta sobrinho: será que isso aí faz mal com pinga? É que acabei de tomar uma ali no boteco e tenho medo de que a mistura não me faça bem...

terça-feira, 27 de julho de 2010

A Manchete*

*Crônica publicada na edição 1031 do Jornal Observador

Mal o editor havia deixado a redação e Aroldo já estava rodeado pelos colegas de trabalho.
- Já virou pessoal, cara. Acho que você não devia permitir isso - indignou-se um deles.
- Se precisar depomos a seu favor - disse o outro.
- Ou vamos articular uma greve geral - exasperou um terceiro.

Era a segunda vez no dia que Aroldo era esculhambado em público pelo editor. O superior hierárquico exigia que o jovem repórter “se virasse” para preencher as páginas do noticiário policial, como se o novato tivesse poderes para empreender tal façanha.
- Não tenho culpa que fundaram esta cidade no local mais frio do país onde nada acontece nessa época - disse Aroldo tentando disfarçar o nervosismo com um sorriso amarelo.

Fez um gesto para que todos voltassem às suas mesas: iria dar um jeito na situação, que ficassem tranquilos. Sentou, suspirou demoradamente enquanto esfregava o rosto com ambas as mãos. Talvez estivesse sendo negligente ao não angariar a confiança irrestrita do pessoal da polícia. Poderia se esforçar mais: assim obteria furos, produziria grandes matérias exaltando a corporação até chegar ao ponto de ser convidado para acompanhar toda grande operação. E o mais importante: garantiria sua subsistência ao superar as diferenças com o editor e talvez ficasse até envergonhado ao ser elogiado pelo superior diante dos colegas.
- Serei o mais badalado repórter policial – pensou alto demais chamando, sem querer, a atenção dos companheiros de labuta.

E colocou-se à execução de seu plano após o expediente. Disparou telefonemas, usou e abusou da retórica, mas só obteve informações que renderiam no máximo uma nota.

Olhou para a máquina de escrever: a folha continuava em branco. A matéria que traria sua redenção insistia em não existir. Verificou a hora: em pouco tempo, o editor estaria em seu plantão para averiguar a produção e o esfolaria vivo.

Abruptamente, recostou o corpo sobre a cadeira e soltou uma breve gargalhada. Assim que ouviu passos no corredor, correu ao encontro do editor. Chamou-o no canto e revelou que tinha uma grande história na mão.

Pediu que o sujeito o acompanhasse até a cozinha e ainda no corredor desferiu-lhe um golpe de punhal que lançou o superior ao chão. O corpo moribundo ainda sacolejou por alguns instantes até ficar totalmente inerte, esvaído em sangue. Aroldo certificou-se de que não deixara vestígios e telefonou para a polícia, informando que ouvira um barulho estranho no prédio.

Já estava com a matéria quase pronta quando a sirene ecoou nos arredores.
- É manchete na certa, teria dito o editor - sentenciou em voz alta ao ler o texto sobre o assassinato que agora era ocultado numa gaveta da escrivaninha.

E saiu correndo para auxiliar os policiais, informar que vira um homem estranho rondando o prédio e chorar copiosamente assim que deparasse com o corpo dilacerado do editor no chão.

sábado, 3 de julho de 2010

O Encontro*

*Crônica publicada na edição 1029 do Jornal Observador

Quando a senha 14408 foi anunciada nos alto-falantes, todos os olhares se voltaram para o saguão de entrada. Um anjo cutucara o outro.
- Aposta é aposta, não vai pular pra trás dessa vez. Seja homem, ou melhor, seja anjo – ressaltou com certa rispidez.

A gravidade da situação fazia sentido. A pessoa por trás da senha era José Saramago, morto naquela manhã, e a aposta especulava como seria sua recepção no Palacete Celestial.

De terno desabotoado, o escritor surgiu no corredor iluminado reparando nas esculturas que decoravam o palácio. Arrumou os óculos quando parou em frente à La Pietá, de Michelangelo.
- Ora pois....mas esta obra não estava até ontem na Basílica de São Pedro? – pensou alto, já desconfiando da fajutice.
- É uma cópia barata, José, eu sei. Mas é que o translado da Terra para o Céu tem causado uma série de problemas – disse o Deus assim que a porta do salão principal se abriu. – Cada vez que eu dou sumiço numa obra de Picasso os humanos ficam obcecados em encontram um bode expiatório – apontou o Senhor.

Assim que Saramago entrou e a enorme porta de madeira se fechou, os anjos que despachavam na ante-sala deixaram os seus postos e colaram os ouvidos na parede. Ninguém queria perder uma cena sequer do encontro histórico.
- Desde a vinda de João Paulo II que eu não via um tumulto desse porte na repartição – apontou um dos anjos apostadores.
- É um fato – continuou o outro sem desencostar um milímetro da porta maciça. – Nem Lennon, que já chegou se comparando ao Filho do Homem, bagunçou tanto o coreto.

Cerrados no salão principal, os cavalheiros trocaram cordialidades como velhos conhecidos. Em seguida diminuíram o tom.
- É pra evitar vazamento na imprensa – apontou Deus do alto de sua sabedoria. – Fui obrigado a pedir segredo de justiça no seu caso, José.
Saramago declarou-se surpreso com o assédio.
- Só espero que eles não leiam meus livros no expediente.
- De maneira alguma. O Estatuto dos Servidores Celestes proíbe, em seu artigo quarto, livros de auto-ajuda e obras de um certo escritor português radicado na Espanha – emendou Deus.

Gargalhadas abafadas foram ouvidas por todo o prédio. Um dos arapongas tentou esquivar-se mas foi surpreendido pelo outro anjo: havia perdido a aposta.

Recomposto, o Senhor solicitou que o senhor assinasse no local indicado pelo xis.
- Seu visto permanente está concedido. Com ele, você poderá inclusive trabalhar para custear sua estadia – informou Deus num tom mais professoral.

Saramago botou o documento no bolso interno do paletó e levantou-se. Despediu-se com um aceno. Já estava com a mão na fechadura quando foi novamente chamado à mesa.
- José, me faça cá um favor: autografe esse “exemplar” de O Evangelho Segundo Jesus Cristo. É o seu manuscrito original. Deu um trabalhão danado mas eu consegui resgatá-lo – disse Deus meio vexado.

Pouco tempo depois o Le Monde traria o furo: “Ladrões furtam originais de O Evangelho Segundo Jesus Cristo”.

sábado, 19 de junho de 2010

Estreia


De repente, interrompo bruscamente a leitura executada sob a sombra fria do jambeiro. Daqui do alto, dá pra ver que a cidade continua concentrada e me estranha o fato de o silêncio ainda não ter sido cortado por rojões apesar de transcorrido algum tempo desde o início da partida.

Boto o tênis e lambuzo o rosto com protetor solar. Hoje a caminhada à beira do asfaltinho será mais cedo: é que, por conta do jogo, liberaram do expediente às 14 horas (E eu ainda dizia que Copa do Mundo não servia pra nada).

Depois de cortar o pasto que separa meu habitat da zona urbana, finalmente piso na rua que vai levar ao meu destino. É comum encontrar conhecidos no trecho mas hoje não veio ninguém. As ruas estão desertas de carro e de gente. O único movimento humano vem de um grupo de crianças que brinca na calçada. Parecem mais felizes do que habitualmente: o local para a diversão se ampliou vertiginosamente graças à calmaria. Uma das crianças, de seis ou sete anos, veste a camisa da seleção, sinal claro de que já fora iniciada no processo de doutrinação. Em todo o trajeto há bandeiras do Brasil expostas para a rua, representação perfeita do patriotismo ocasional do brasileiro.

A caminhada começa efetivamente após o cemitério. A partir dali, o asfaltinho é ladeado por pastos e restingas que, juntamente com o pôr do sol, compõem um belo cenário nos fins de tarde. É também depois do cemitério que encontro meu tio-avô sentado à beira do caminho a aguardar as vacas que ainda não desceram para o curral.
– Bença, tio. Não está vendo o jogo? – pergunto, embora já saiba a resposta.
– Bem capaz ....bola pra mim só se for de mortadela, e daquela com bastante gordurinha ainda! – responde às gargalhadas.
Nos despedimos em seguida depois de trocar duas ou três palavras sobre o tempo ou sobre o estado de saúde da tia. Sigo em frente pensando se talvez a aversão por futebol seja genética.

É só no meio do itinerário que ouço a primeira salva de rojões. Brasil um a zero. Contra quem mesmo? E depois outra já de volta à zona urbana. Um trabalhador rural que se dirige ao ponto de ônibus ligeiramente apressado diminui o andar da carruagem ao passar na frente de uma residência que acompanha a partida com o volume da televisão no 10. Ele reduz a velocidade ao máximo, como se tentasse apreciar os últimos lances antes de tomar a condução para o trabalho. E retoma o andamento original assim que o volume da tv fica inaudível.

Apesar de o mundo ser só meu naquele dia e a via estar livre de ônibus e carros, demoro mais que o habitual para cumprir o trecho. Lembro da canção “O dia em que a Terra parou”, do Raul. Mas o sol é alheio a tudo isso e já some no horizonte. Vai ser difícil tomar banho num frio desses.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

O capoeira*

*Crônica publicada na edição 1021 do Jornal Observador

Mancomunados, os três – um civil, um policial local e um policial da capital que visitava sua cidade natal – chegaram ao bar. Fizeram um sinal ao dono do estabelecimento e apontaram discretamente para a vítima: um negrinho franzino que tomava sua cota de pinga num canto inabitado do boteco, longe da badalação do ambiente.

Retirante que se fixara na região para trabalhar na colheita de algodão, o negrinho não imaginava que era o escolhido do dia para dar vazão à monotonia dominical daquela cidade do interior quando assuntou a aproximação dos três desconhecidos e, junto com eles, os olhares sarcásticos dos demais frequentadores do local, ávidos por uma boa briga, coisa que há muito tempo não ocorria por ali.

Mas, ao contrário do esperado, o negrinho não reagiu à voz de prisão, minando de uma vez por todas qualquer expectativa de tumulto generalizado. Xeque-mate: os arrumadores de confusão eram colocados à prova pela primeira vez. Com a batata quente na mão, o policial titular se viu na obrigação de prender de verdade o desconhecido na medida em que os botequeiros de plantão vaiavam a atuação frustrada da comitiva e retornavam ao balcão, zombando da autoridade local.

Restava então passar uma descompostura no negrinho para lhe ensinar a não folgar na cidade dos outros e, principalmente, a não desmoralizar autoridades perante os seus subordinados.

Já na delegacia, sentado numa cadeira no meio da cela e algemado com as mãos para trás, o negrinho reverteu o jogo – de novo – ao se safar de um “copinho” aplicado pelas costas. Lançando o corpo no ar, conseguiu trazer as mãos algemadas para frente do corpo depois de encolher as pernas o suficiente para alcançar tal êxito.

E então o pau comeu, e não havia lugar naquele cubículo que estivesse imune dos pés velozes do negrinho. Atônito, o civil que sabiamente havia permanecido fora da cela assistia à cena perplexo: uma sucessão de golpes e voadoras que sequer permitia que os militares recuperassem o fôlego ou permanecessem em pé. A tragédia só não foi maior porque o policial titular tinha deixado o revólver sobre uma mesa também do lado de fora da cela, juntamente com o espectador privilegiado.

No dia seguinte, um decreto informal foi baixado por um sujeito fardado e com três costelas quebradas: a brincadeira nos botecos estava suspensa por tempo indeterminado.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

No ouvido de José*

*Crônica publicada na edição 1027 do Jornal Observador

Indignado, um estudante pede a palavra.
- Com todo o respeito que tenho pelos mais velhos, quem delegou ao senhor o direito de criticar gratuitamente a Igreja e a religião? O senhor não tem outra atividade mais produtiva para desenvolver a não ser viajar pelo mundo criticando aquilo que não lhe diz respeito?

Parte da plateia demonstra pronta indignação diante da indelicadeza do participante. Sem exteriorizar qualquer hesitação, o senhor – José Saramago – acena com as mãos para que o público se acalme, como se sugerisse a todos que não precisaria de defesa ou complacência de quem quer que fosse.

Aplacados os ânimos, Saramago retoma o microfone ainda com mais calma do que antes.
- Mesmo que me tivessem delegado algo, uma coisa é certa: esse direito não seria originário do grupo ao qual você provavelmente pertence. Se assim fosse, eu estaria a andar pelo mundo utilizando a religião para justificar atrocidades.

O burburinho imediato na plateia indicava que o inimigo perdera a batalha. Saramago, mais uma vez, buscou anular qualquer hostilidade que pudesse ser dirigida contra o estudante e deu continuidade ao debate.

Finda a apresentação, tomou um voo e em poucas horas já estava em casa. Jantou com a esposa e, após organizar por algum tempo uma pilha de manuscritos, sentou-se à cama.

Enquanto tirava os sapatos com certa dificuldade, observara que Pilar já dormia. O Senhor então lhe observou:
- Foste reto e coerente mais uma vez, José. Tens galgado a passos largos os degraus da Sabedoria.
- Obrigado senhor, os anos de vida têm me trazido benesses ao Espírito.

E, aproximando-se, Deus confidenciou-lhe algo nos ouvidos. Saramago ficou pensativo por alguns minutos e pensou em acordar a mulher para anunciar o tema de seu próximo romance. Porém Pilar parecia imersa num sono tão profundo que ele resolveu esperar o dia seguinte. “Haverá muito tempo amanhã”, avaliou.

E adormeceu enquanto rezava mentalmente um padre-nosso.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Despedida

Camila reconduz para trás da orelha a franja que grudara em sua boca por causa do caminhar apressado que sacolejava o seu corpo. Tem ainda em mente o ruído recente oriundo do fechar brusco de uma porta.

Não olha para trás. O único resquício com o já passado está em imaginar, mais por curiosidade do que por maldade, como sua partida repentina será assimilada. Ao mesmo tempo, se questiona se está agindo de maneira correta, se não seria melhor acabar tudo formalmente, civilizadamente como fazem os casais normais. Acontece que provavelmente iria suceder o mesmo das outras crises: ele iria se esvair em lágrimas, prometer mudar e lhe dar mais atenção, além de propor um jantar romântico num restaurante qualquer para demonstrar sua disposição em se regenerar. Ela, mais uma vez, iria aceitar embora já soubesse que nada daquilo era verdade e que o armistício não chegaria ao próximo final de semana.

De qualquer forma, o mais provável é que ele nem vá notar a casa vazia. Continuaria indiferente, como sempre fora, à sua existência. Talvez só desse falta lá pelas 20 horas, horário em que ela normalmente chegava da academia. Ainda assim permaneceria um bom tempo entretido em planilhas armazenadas no notebook ou então concentrado nas séries policiais daquele canal a cabo e só ligaria depois das 10 da noite, preocupado se ela se metera em algum acidente que pudesse ter causado algum dano ao carro.

Como ele havia mudado nesses poucos anos de convivência sob o mesmo teto. Transformara-se num troglodita, impaciente enquanto ela se vestia e neurótico nas crises idiotas de ciúmes em festas ou barzinhos, enquanto ela era obrigada a tolerar o seu olhar devorador em cima de qualquer mulher que passasse por perto.

Como se permitiu chegar a essa situação? Deveria ter reparado na índole dele ainda durante o namoro. E rememorava as inúmeras vezes em que ele ligava no sábado à tarde para avisar que iria pegá-la para um passeio. Ela se arrumava, se perfumava, preparava o cabelo, escolhia uma roupa legal e se prostrava à sua espera. Mas o passeio – quase sempre – tinha o único intuito de encaminhá-la para “ajudar” na organização do churrasco da família ou dos amigos futeboleiros dele. Ainda assim, ela frequentemente levava a fama de vagabunda da matriarca da casa, que reportava publicamente ao filho a ineficiência e a má vontade da futura nora.

Como fora tola tantas vezes. Deveria ter botado sal no prato da velha a fim de causar-lhe um infarto fulminante. Mas, principalmente, não deveria ter resistido aos flertes descarados daquele amigo dele sempre presente nesses eventos. Deveria tê-lo beijado (mesmo sem vontade) na frente de todos e assim causar uma hecatombe no seio daquela família.

Pensou melhor. Não gostaria de ter qualquer atitude que se assemelhasse à índole dele.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Céu


Numa fração de segundo, os três requeridos estavam sentados em cadeiras localizadas numa pequena sala cuja alvura das paredes chegava a incomodar a vista.
- A última coisa que eu ouvi foi um barulho ensurdecedor. Não vi corredor algum e muito menos luz no fim do túnel como me disseram a vida toda, dizia a senhora beata enquanto voltava o corpo para trás na tentativa de buscar a expressão de seu interlocutor.
- Eu cochilava no momento do ocorrido e senti apenas uma pressão forte sobre meu peito. De resto não senti absolutamente nada, enfatizou o político de carreira.

A senhora baixou o tom de voz e colocou o congressista a par do mais recente caso de traição conjugal na paróquia, que por sua vez flexionou o tronco à frente para ouvir a narração do episódio com mais clareza.

Alheio a tudo, o poeta ateu rabiscava qualquer coisa num canto da parede quando foi repreendido por um senhor de barba branca que acabara de entrar na saleta sem qualquer aviso.
- Ei rapaz, tira já esse lápis sujo e terreno daí. Será que você não sabe que pisa num local santo?
- E vocês dois parem de comentar sobre a vida alheia. Vocês já têm problemas demais pra resolver, disse com cara de poucas amizades. Disfarçadamente, a velha girou o dedo no ar horizontalmente para indicar ao homem que continuaria a história num momento mais oportuno.

O senhor de barba branca sacou do bolso um enorme e surrado livro com capa negra e colocou-o sobre uma mesa baixa.
- Vocês vão se levantar sem tumulto e assinar esse livro que formaliza o Auto de Morte de cada um de vocês. Só assim poderei dar prosseguimento ao processo.

Antes de qualquer reação dos demais ocupantes da saleta, a beata deu um pulo da cadeira portando um sorriso largo no rosto.
- Quando entramos no Reino dos Céus?, perguntou já debruçada sobre o livro.
- Minha senhora, estamos apenas iniciando o processo como acabei de explicar. Não há qualquer previsão, apontou o senhor de barba branca.

A velha protestou de imediato. Disse que aquilo era um absurdo, que por toda sua vida havia se dedicado à Igreja, que doara parte dos bens à paróquia depois da morte do marido e que, inclusive, havia sido catequista por longos anos.
- Portanto, eu exijo prioridade sobre estes dois, gritou. Conheço as leis divinas e estou apta para ingressar – agora – na Casa do Senhor.

O senhor de barba branca coçava e cabeça e olhava para o chão enquanto ouvia a reclamação.
- Minha senhora, conhecer a lei divina não significa nada aqui. Aliás, será até pior para a senhora. Quantas vezes a senhora levantou falso testemunho contra casais? E por quantas vezes julgou que fulano ou cicrano era indigno de frequentar a missa?

A velha fez uma cara de espanto e calou-se. Nessa altura o político de carreira já demonstrava preocupação com a direção que a conversa havia tomado. O poeta ateu permanecia sentado, indiferente a tudo.
- Mas e as obras de caridade e as boas ações que realizamos ao longo da vida? Eu, por exemplo, doei milhares de cestas básicas durante os anos em que atuei na vida pública, questionou o político de carreira.

O senhor de barba branca bateu a mão repetidas vezes no ombro do congressista.
- Meu amigo, alguém deveria ter lhe dito que obra de caridade deve ser feita no foro intimo e não se utilizando do Estado como você fez. Desse jeito qualquer um faz, não é mesmo?

O político de carreira também se calou. O senhor de barba branca prosseguiu.
- Vocês dois fizeram o bem por interesse e isso é pior que qualquer pecado. Ficaram cegos diante das interpretações humanas sobre Deus e jamais questionaram certas ações que são claramente incompatíveis com a Lei Santa.

O político de carreira e a velha beata tomaram consciência da gravidade da situação.
- E a tramitação na justiça divina não costuma ser muito rápida. Esse é um dos poucos pontos em que Céu e Terra são parecidos.

O poeta acabara de ser repreendido novamente por escrever algo na parede.
- Vejamos esse homem, disse o senhor de barba branca apontando para o poeta ateu. Ele é um sujeito sem fé, nunca acreditou em Deus mas fez o bem pelo bem sem esperar redenção divina já que não acredita nela mesmo. E por isso mesmo – e paradoxalmente – está em situação melhor que a de vocês.

O poeta ateu percebeu que falavam sobre ele e resolveu entrar na roda.
- Escutem todos: não estou nem um pouco preocupado com essa história de salvação. Ô Pedroca, se eu for passar a eternidade por aqui pelo menos me arranje um caderninho e uma caneta.

Então o senhor de barba branca foi até a mesa, puxou uma gaveta e apertou um botão vermelho que abriu um alçapão sob os pés do poeta ateu, conduzindo-o definitivamente para o Reino dos Céus.

O senhor de barba branca se dirigiu novamente à senhora beata e ao político de carreira, que a essa altura já portavam desespero em suas faces.
- Não costumamos receber escritores por aqui. Eles geralmente são responsáveis por motins que tiram a tranquilidade da Casa do Pai. Porém, diante da monotonia da eternidade, eles são mais úteis do que religiosos fervorosos ou políticos demagógicos.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Conversa com Humanos

Os dois malucos colaram quando eu e o Willian improvisávamos sobre a harmonia de Sultans of Swing. Sentaram no chão da praça bem em frente ao banco integralmente ocupado só por nós dois por causa da anatomia dos violões e permaneceram em silêncio.

Já havia uma galera no esquema de sempre: um grupinho aqui, outro acolá e vinho comunitário na madrugada que se iniciava. Afora os dois “estranhos” recém chegados, o pessoal era quase o mesmo.

De canto de olho, botei reparo nos adolescentes ainda durante a execução da canção. Sujeira, pensei, se rolasse uma batida policial ali rodaria todo mundo. Estabelecidos no chão, era óbvio que não sairiam dali tão cedo. Seria inútil então levar o instrumental adiante na tentativa de dispersar quem quer que fosse.

- Podemos curtir um som com vocês?, perguntou um deles.
- Lógico, veio a resposta titubeante do banco.

Um dos adolescentes, já em avançado estágio etílico, puxou uma conversa comigo. Falou que já não frequentava o grupo de jovens há um bom tempo. Disse ainda que não ia mais à missa porque já estava cheio de ser filmado pelos “cidadãos de bem” toda vez que botava o pé na porta da igreja.
- O senhor veio para todos, respondi. Todos são dignos dele, independentemente dos nossos problemas, expus na tentativa de pelo menos amenizar aquela angústia dirigida espontaneamente a mim.

Agora era a outra voz que se voltava.
– Você se lembra daquela vez em nos encontramos em Santa Cruz do Rio Pardo? Eu nem imaginava que você iria me cumprimentar, afinal a gente nunca tinha trocado ideia. Sangue bom você.

Era um vínculo que se formara à revelia devido a um encontro casual ocorrido na rodoviária da cidade em 2006, coisa que eu já nem me lembrava mais. Imediatamente, fiquei com a consciência pesada por ter (pré) julgado os caras. A passagem também me deu subsídios para perceber que tratar a todos como humanos é imprescindível, principalmente aqueles classificados como a escória da sociedade. Grande lição aprendida da maneira mais despretensiosa possível.

Esse mesmo jovem reproduz um som com a boca e pede que eu tente executar o resultado no violão.
- Dá pra tocar aí sim, a gente fazia isso na Febem, afirma. Imediatamente o Willian, que é o que tem mais trânsito livre e familiaridade com os meninos, assume a missão diante da minha dificuldade de encontrar a batida.

Eles entoam em uníssono “Homem na Estrada”, épico dos Racionais que narra a trajetória de um sujeito que tenta retomar a vida depois de passar pelo crime. Não erram uma vírgula sequer da letra quilométrica. Ocorre o mesmo com mais duas ou três canções de rap, todas denunciando basicamente a opressão estatal sobre os oprimidos e a má distribuição de renda reinante no país.

O momento é mágico, jamais imaginaria celebrar com pessoas como aquelas. Já não me preocupo mais com o que vão dizer caso eu seja visto ali naquela hora da madrugada.
- Vocês são sociedade, mas é legal estarem aqui, um deles diz.
- Não senhor, somos todos oprimidos, retifico.

A bebida acaba. Não há mais bares abertos. Os dois jovens saem com uma condição: que permaneçamos ali até que eles voltem com mais bebida.

A cantoria ganha ainda mais fôlego. Só por volta das 4 horas o esgotamento físico é latente. É hora de dispersar, mas antes um convite inusitado.
- Cara, vocês vão tocar no meu aniversário, nem que eu tenha que pagar.
- Meu, não existe esse negócio de pagar, a gente toca pra curtir, diz o Willian.
- É só avisar o dia, arremato.

Os dois cortam a praça a pé e pegam a reta da quebrada. Nós também pegamos o nosso rumo, cientes de que a noite já rendera algo que dinheiro nenhum seria capaz de comprar.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A Babel é aqui

Em qualquer um dos pontos turísticos de Manaus, pelo menos dois corpos transam escancaradamente à luz do dia: a língua inglesa e a língua portuguesa. As línguas francesa, alemã, italiana e espanhola também participam da orgia, embora com menor incidência.

É assim em feiras, camelôs, prédios históricos e ruas. Após a visita ao Palácio Provincial, eu e o Binho paramos num café situado no térreo. Era a chance de rebater a friagem após levarmos uma chuvarada sem tamanho nas costas. Na mesa ao lado, um homem de meia idade e uma mulher beirando os 30 anos conversavam em francês enquanto olhavam uma espécie de catálogo. Acho que eram pesquisadores. Já na visita ao Bosque da Ciência, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), foi um casal australianos que nos fez companhia durante a visita aos jacarés.

Se a variedade de línguas por metro quadrado for considerada um item importante numa eventual competição, Manaus poderia ser eleita a capital mais cosmopolita do país, deixando pra trás cidades historicamente cosmopolitas como São Paulo e Rio.


Peixe vai bem, obrigado

O calor é sufocante mesmo com tempo nublado, sempre é bom lembrar. Mesmo assim, o Carlinhos não arreda o pé da churrasqueira: está preparando um tambaqui assado que vai ao fogo com escamas, prática que – graças ao conhecimento indígena – não permite que o alimento torre.

O tambaqui não é o primeiro da lista. Já passamos pelo matrinchã sem espinhos, tucunaré frito, pirarucu assado, caldo de piranha e por aí vai. Por ser mais leve que carne vermelha, o peixe é rapidamente digerido pelo organismo e não te deixa com aquela sensação de “estomago pesado” após as refeições, o que é um importante item de sobrevivência principalmente numa quentura daquela.

É sábado e a cerveja gelada é a única bebida que parece amenizar o calor. Até eu me arrisco a bebericar meio copo dela de hora em hora. É que vinho – por conta de suas características – não desce nem trincando de gelado por causa do clima.

Continua...(ou não)

sábado, 2 de janeiro de 2010

O culpado é o Milton


Fui a Manaus por influência de Milton Hatoum. Há algum tempo eu acompanho semanalmente as crônicas do escritor publicadas no Estadão. Em muitas delas, ele expõe suas reminiscências ligadas à mítica capital do Amazonas, o que aos poucos foi me levantando uma curiosidade surpreendente.

No início do ano encontrei um amigo de longa data numa lanchonete. Conversamos um pouco e ele me informara que prestaria serviço militar em São Gabriel da Cachoeira, que fica a mais ou menos 18 horas de Manaus via barco. Disse ainda pra eu aparecer quando quisesse. Eu disse que iria no final do ano. Mas a conjuntura mudou e ele foi deslocado para outra região.

Lá pelo mês de julho apareceu um outro amigo. Em determinado momento, Manaus entrou espontaneamente na pauta.
- Ei, eu tenho um tio lá e já estou até convidado para ir visitá-lo.

Estava feito o rolo. Hatoum, te mando a conta depois.

Civilização hidráulica

Pretendia refutar o clichê “onde tradição e modernidade se encontram” para descrevê-la mas foi impossível. Manaus é, ao mesmo tempo, um de pólo tecnológico e uma região onde a vida é regida pelo curso das águas. Seis meses na cheia, seis meses na vazante. Os ribeirinhos situados às margens do Rio Negro – que banha a capital – moram em palafitas aparentemente exageradas quando a água está em seu nível mais baixo. Dali para o interior todo o transporte é feito via barco, de passageiros a mercadorias. Tem linha para Parintins, São Gabriel da Cachoeira, Humaitá e dezenas de outras localidades. Para abastecer as milhares de embarcações existentes, há postos de combustível que bóiam no meio do rio, aceitam cartão de crédito e tudo. O cais flutuante evita que a vida pare durante a oscilação das águas.

Já na zona urbana há trânsito caótico, engarrafamentos e buzinadas nervosas a cada segundo. Parece São Paulo. Não existe metrô e o transporte coletivo não é lá “uma maravilha”, palavras dos próprios nativos.

O distrito industrial abriga filial de qualquer marca que se possa imaginar. Pensou em Samsung, tem lá. Pensou em Sony, tem lá. Pensou no diabo a quatro, você vê lá. Durante o passeio por ali me pus a pensar no motivo pelo qual tais empresas estão instaladas numa cidade que é separada do restante do país pela floresta, cujo acesso não é nada fácil principalmente se pensarmos em termos rodoviários. Era um surto bairrista que me atingia naquele momento, refutado logo em seguida ao passarmos pela empresa que produz os cds que nós ouvimos.

Encontro das águas regado à caipirinha de cupuaçu

Encostado no balcão do bar instalado na embarcação, observo a vastidão do Negro. Do meio do rio, é possível avistar centenas de contêineres na região do distrito industrial. Na margem oposta, a floresta se aproxima.

A moça finalmente traz o meu pedido: caipirinha de cupuaçu. Passeio mais um pouco pelo barco a observar o horizonte e colo no bar novamente para experimentar outra iguaria: a exótica caipirinha de taperebá. Minha percepção já está um pouco alterada nessa altura.

O grupo de turistas é variado: há portugueses, australianos, indianos e estadunidenses, além de brasileiros de todas as partes do país. Tinha também um cara da Guatemala com calça jeans preta e chapéu de caubói mesmo naquele calor insuportável.

Puxo conversa com um indiano que vestia uma camiseta do Flamengo (Lá só dá time carioca). A visão limitada do visitante nos leva a priorizar o belíssimo assunto futebol. Mas não é culpa dele, o próprio Brasil trabalha no sentido de reforçar esse estereótipo. Menos mal, a coisa também poderia ter desandado para outros temas incríveis como carnaval, Olimpíadas ou Copa do Mundo.

Felizmente o barco aporta. Já era hora, pois o meu (combalido) inglês estava em vias de não dar conta de levar adiante um assunto que não tenho domínio nem mesmo na minha própria língua. Chegava o momento da caminhada na mata e da visita aos ribeirinhos.

Onde o filho chora e a mãe não vê

São três horas da matina. Manaus ainda vive a ressaca da vitória do Flamengo obtida na noite anterior. Enquanto isso Binho, Carlinhos e eu preparamos a tralha de pesca. O destino é a represa de Balbina, que começa em Presidente Figueiredo ou a cerca de 170 quilômetros da capital.

A estrada – ladeada pela mata – é a mesma que leva a Caracas, capital da Venezuela. Essa é apenas a segunda vez que o carro do Carlinhos pega uma longa distância, afinal não há muitas rodovias. Conforme adentramos a floresta vai se mostrando ainda mais exuberante, reservando paisagens belíssimas mesmo às margens da rodovia.

Seis horas da manhã e já estamos numa comunidade ribeirinha distante 40 quilômetros de Presidente Figueiredo. O acesso se dá unicamente por estrada de terra e o vilarejo não deve ter mais de mil pessoas. Barcos surrados com o logotipo da prefeitura trazem alunos vindos do fundão do Amazonas.

Contratamos o serviço de um nativo para nos levar rio acima numa “voadeira”, barco de madeira tocado por um motor de pouca potência chamado rabeta. Apesar da vastidão, o rio está baixo e há tocos e galhos salientes por todos os lados. O nativo dirige a pequena embarcação por uma tortuosa estrada imaginária. Sabe exatamente por onde deve seguir para não esbarrar em algum obstáculo, mesmo diante de um cenário que parece se repetir trecho a trecho. Pelo caminho cruzamos com dezenas de outras voadeiras que levam nativos para todos os lados. Aqui a floresta amazônica reina absoluta. Não há eletricidade ou sinais de civilização, apenas comunidades de ribeirinhos espalhados em pequenas e abundantes ilhotas. É possivelmente o único lugar do mundo onde pessoas com baixo poder aquisitivo podem se dar ao luxo de ter uma ilha particular.

O nosso piloteiro vacila e batemos num tronco submerso. A pancada seria capaz de jogar alguém na água, o que felizmente não ocorre. Mas a passagem serviu para dar mais emoção ao passeio, sem falar na emoção de ver o barquinho “fazendo água” enquanto o piloteiro tenta amenizar o problema com a ajuda de um pequeno recipiente de plástico.

Finalmente chegamos ao nosso destino: a pousada na mata que seria o ponto de partida para a pescaria de tucunaré.

Pão com banana e caldo de peixe no café da manhã

Chove abundantemente em Manaus. Não há raios ou nuvens carregadíssimas como as que normalmente vemos em dias instáveis, apenas um céu uniformemente acinzentado. E chuva que Deus manda.

Eu e o Binho tentamos nos proteger sob os toldos das lojas situadas no largo da Praça do Relógio. São 8 horas da manhã. O comércio ainda está sonolento e a chuvarada parece esfriar ainda mais os ânimos dos vendedores.

Sem qualquer outra opção viável, me vem a ideia de dar continuidade ao passeio gastronômico e experimentar um legítimo café da manhã manauara. Adentro a espelunca e passo a vista no menu colado à parede. Mas o meu relógio biológico parece não gostar do que vê: pão com banana talvez não mate a fome e caldo de peixe àquela hora da manhã com certeza não seria bem recebido pelo meu estômago.

Opto pelo tradicional pão de queijo acompanhado por um suco de laranja com açúcar e gelo. Sem graça, porém a opção mais segura para quem quer continuar o passeio pelo alagado centro histórico de Manaus sem ser surpreendido por uma suspeita movimentação intestinal.

Continua (talvez)...