quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Será que faz mal com pinga?*

* Crônica publicada na edição 1037 do Jornal Observador

Tio Ranulfo chegara bêbado outra vez. Como se não bastasse tomar pinga contrariando a orientação médica, o velho anunciava com tanta veemência que iria dar cabo da própria vida que decidi agir.

Eu já ouvira a ameaça anteriormente e estava claro que era apenas uma das artimanhas do velho só para me encurralar. Na primeira vez que ele proferiu tal intenção, eu - um tanto quanto assustado - optei por dissuadi-lo da ideia por meio da retórica. Porém, percebi ao longo do tempo que tudo não passava de um puro e simples blefe.
- Quem quer se matar de verdade não anuncia – analisei com meus botões.

Era chegada a hora de passar uma descompostura no velho e querido tio.

Munido dessa constatação, preparei um plano mirabolante e distribui sobre a pia da cozinha o necessário para o sucesso da empreitada: um copo de água e dois comprimidos efervescentes de Sal de Fruta.

Por volta das 11 da noite ouvi tio Ranulfo entrar pelo corredor já resmungando depois de permanecer por várias horas no bar. Rapidamente me pus de pé e corri até a cozinha para simular uma atividade qualquer. O velho entrou e, assim que me viu debruçado sobre a pia, iniciou a ladainha: estava cansado da vida e iria se matar.

De súbito, entrei em cena.
- Tio, já deixei tudo preparado para não adiar o sofrimento do senhor. Tome esse veneno aqui, é tomar e morrer – afirmei, sério, oferecendo-lhe o copo que borbulhava ferozmente a ponto de transbordar.

Tio Ranulfo estacou, arregalou os olhos e engasgou. Eu insisti.
- Toma isso aqui tio, é veneno pior do que pó de broca. O senhor não quer se matar? É tomar e morrer – reiterei.

O velho fixou o olhar no copo transbordado que continuava em minha mão. Por um momento, um silêncio profundo tomou conta da cozinha até que tio Ranulfo perguntou apreensivo.
- Escuta sobrinho: será que isso aí faz mal com pinga? É que acabei de tomar uma ali no boteco e tenho medo de que a mistura não me faça bem...