terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Conversa com Humanos

Os dois malucos colaram quando eu e o Willian improvisávamos sobre a harmonia de Sultans of Swing. Sentaram no chão da praça bem em frente ao banco integralmente ocupado só por nós dois por causa da anatomia dos violões e permaneceram em silêncio.

Já havia uma galera no esquema de sempre: um grupinho aqui, outro acolá e vinho comunitário na madrugada que se iniciava. Afora os dois “estranhos” recém chegados, o pessoal era quase o mesmo.

De canto de olho, botei reparo nos adolescentes ainda durante a execução da canção. Sujeira, pensei, se rolasse uma batida policial ali rodaria todo mundo. Estabelecidos no chão, era óbvio que não sairiam dali tão cedo. Seria inútil então levar o instrumental adiante na tentativa de dispersar quem quer que fosse.

- Podemos curtir um som com vocês?, perguntou um deles.
- Lógico, veio a resposta titubeante do banco.

Um dos adolescentes, já em avançado estágio etílico, puxou uma conversa comigo. Falou que já não frequentava o grupo de jovens há um bom tempo. Disse ainda que não ia mais à missa porque já estava cheio de ser filmado pelos “cidadãos de bem” toda vez que botava o pé na porta da igreja.
- O senhor veio para todos, respondi. Todos são dignos dele, independentemente dos nossos problemas, expus na tentativa de pelo menos amenizar aquela angústia dirigida espontaneamente a mim.

Agora era a outra voz que se voltava.
– Você se lembra daquela vez em nos encontramos em Santa Cruz do Rio Pardo? Eu nem imaginava que você iria me cumprimentar, afinal a gente nunca tinha trocado ideia. Sangue bom você.

Era um vínculo que se formara à revelia devido a um encontro casual ocorrido na rodoviária da cidade em 2006, coisa que eu já nem me lembrava mais. Imediatamente, fiquei com a consciência pesada por ter (pré) julgado os caras. A passagem também me deu subsídios para perceber que tratar a todos como humanos é imprescindível, principalmente aqueles classificados como a escória da sociedade. Grande lição aprendida da maneira mais despretensiosa possível.

Esse mesmo jovem reproduz um som com a boca e pede que eu tente executar o resultado no violão.
- Dá pra tocar aí sim, a gente fazia isso na Febem, afirma. Imediatamente o Willian, que é o que tem mais trânsito livre e familiaridade com os meninos, assume a missão diante da minha dificuldade de encontrar a batida.

Eles entoam em uníssono “Homem na Estrada”, épico dos Racionais que narra a trajetória de um sujeito que tenta retomar a vida depois de passar pelo crime. Não erram uma vírgula sequer da letra quilométrica. Ocorre o mesmo com mais duas ou três canções de rap, todas denunciando basicamente a opressão estatal sobre os oprimidos e a má distribuição de renda reinante no país.

O momento é mágico, jamais imaginaria celebrar com pessoas como aquelas. Já não me preocupo mais com o que vão dizer caso eu seja visto ali naquela hora da madrugada.
- Vocês são sociedade, mas é legal estarem aqui, um deles diz.
- Não senhor, somos todos oprimidos, retifico.

A bebida acaba. Não há mais bares abertos. Os dois jovens saem com uma condição: que permaneçamos ali até que eles voltem com mais bebida.

A cantoria ganha ainda mais fôlego. Só por volta das 4 horas o esgotamento físico é latente. É hora de dispersar, mas antes um convite inusitado.
- Cara, vocês vão tocar no meu aniversário, nem que eu tenha que pagar.
- Meu, não existe esse negócio de pagar, a gente toca pra curtir, diz o Willian.
- É só avisar o dia, arremato.

Os dois cortam a praça a pé e pegam a reta da quebrada. Nós também pegamos o nosso rumo, cientes de que a noite já rendera algo que dinheiro nenhum seria capaz de comprar.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A Babel é aqui

Em qualquer um dos pontos turísticos de Manaus, pelo menos dois corpos transam escancaradamente à luz do dia: a língua inglesa e a língua portuguesa. As línguas francesa, alemã, italiana e espanhola também participam da orgia, embora com menor incidência.

É assim em feiras, camelôs, prédios históricos e ruas. Após a visita ao Palácio Provincial, eu e o Binho paramos num café situado no térreo. Era a chance de rebater a friagem após levarmos uma chuvarada sem tamanho nas costas. Na mesa ao lado, um homem de meia idade e uma mulher beirando os 30 anos conversavam em francês enquanto olhavam uma espécie de catálogo. Acho que eram pesquisadores. Já na visita ao Bosque da Ciência, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), foi um casal australianos que nos fez companhia durante a visita aos jacarés.

Se a variedade de línguas por metro quadrado for considerada um item importante numa eventual competição, Manaus poderia ser eleita a capital mais cosmopolita do país, deixando pra trás cidades historicamente cosmopolitas como São Paulo e Rio.


Peixe vai bem, obrigado

O calor é sufocante mesmo com tempo nublado, sempre é bom lembrar. Mesmo assim, o Carlinhos não arreda o pé da churrasqueira: está preparando um tambaqui assado que vai ao fogo com escamas, prática que – graças ao conhecimento indígena – não permite que o alimento torre.

O tambaqui não é o primeiro da lista. Já passamos pelo matrinchã sem espinhos, tucunaré frito, pirarucu assado, caldo de piranha e por aí vai. Por ser mais leve que carne vermelha, o peixe é rapidamente digerido pelo organismo e não te deixa com aquela sensação de “estomago pesado” após as refeições, o que é um importante item de sobrevivência principalmente numa quentura daquela.

É sábado e a cerveja gelada é a única bebida que parece amenizar o calor. Até eu me arrisco a bebericar meio copo dela de hora em hora. É que vinho – por conta de suas características – não desce nem trincando de gelado por causa do clima.

Continua...(ou não)