sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Retrato de uma solidão*


A casa está em silêncio, parece maior agora. É estranho: há pouco quase não comportava as vivas almas que tumultuavam o clima de monastério que reina durante o ano todo.

Cá estou de novo, sozinha, empurrada para esse poço de solidão também chamado de velhice. Os netos se foram assim como os filhos se foram um dia.  

Sempre foi assim. Presentes, ceia, um beijo formal no rosto, algumas horas jogando conversa fora. De repente olham o relógio e dão um salto do sofá, cada qual com a sua justificativa. “Tenho que ir: negócios”. “Preciso passar uns dias na cidade do meu namorado”. “Vou pegar uma praia com os amigos”. Nem se dão ao luxo de renovar os argumentos do ano anterior. Simplesmente se vão, como se nutrissem uma necessidade irrevogável de ir.

Essa parece ser uma casa de partidas, nunca de chegadas. No máximo um porto de apoio. Eu fico com a sensação de que tudo não passa de obrigação, uma formalidade imposta pelos pais ou pela consciência. Deus me perdoe por pensar assim. Eu sei que eles me amam, mas fico triste por nunca ter tempo de demonstrar o meu afeto.

Penso em palavras de amor, seleciono memórias e ensaio chantagens na tentativa de fazê-los voltar em breve. Porém acabo no sofá, à deriva, sem acompanhar a conversa, tendo que suportar os descabidos flertes entre primos e primas, perdida entre a farra dos que até ontem eram crianças, hoje homens feitos e mulheres belíssimas.

Não está longe, porém, o dia em que não precisarão mais vir. Ou melhor, virão pela última vez, às pressas, diante da notícia inesperada. Confesso que não ficaria incomodada se acontecesse durante um dia útil.

E que o meu sorriso irônico no caixão simbolize – para a perplexidade de todos – a morte da velha desculpa: “Estou muito ocupado com o trabalho. Só nos veremos no feriado”. 

* O texto obteve o 3º lugar na categoria Crônica no VI Festival Literário de Avaré. 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Fogo no Céu*


* Crônica publicada na edição 1160 do Jornal Observador

As luzes apareceram por volta das 22 horas. Era uma noite nublada e de qualquer ponto da cidade era possível avistar os dois grandes círculos que, misteriosamente, faziam traçados aleatórios no céu.

   Houve um alvoroço nas ruas. “Que diabo é aquilo?”. “É o fim do mundo!”. “Oh meu Deus, uma invasão alienígena!”. “Nostradamus previu isso!”. “É nada: é bíblico. Apocalipse, mas não me lembro o versículo!”. “Não fale em diabo numa hora dessas, homem!”. “Tende piedade de nós, Senhor!”.

O padre, um europeu dono de um português lastimável, não hesitou. “Há duas luzes estranhas sobre nossas cabeças”, anunciou solenemente no alto-falante da Matriz. Prontamente um grupo de senhoras assustadas se reuniu no templo para rezar o terço. Agora a população inteira estava na rua observando o fenômeno.

Amedrontadas, as crianças se agarravam às mães. Os homens se armaram com foices e garruchas. “Estejamos preparados para o que der e vier”, diziam uns aos outros procurando não demonstrar o temor que sentiam.  

No boteco, um sujeito trouxe à tona a reportagem televisiva recentemente veiculada sobre a autópsia de um extraterrestre.
- É evidente que estão aqui por causa disso. Talvez não tenham gostado da matéria: revelou a existência deles. 
- Ficou louco, foi? E por acaso eles têm televisão lá? – acudiu o outro.
- É claro que sim, e com parabólica e tudo. Se eles têm naves espaciais, por que não teriam uma tecnologia tão obsoleta? Um silêncio momentâneo inundou o estabelecimento.

A polícia foi acionada. “Vou consultar o meu superior: nunca vi um caso assim”. A situação permaneceu inalterada por algumas horas. Vencidas pelo cansaço, pouco a pouco as pessoas foram se retirando. “Vamos aguardar o amanhecer. Se essas luzes ainda estiveram aí, a gente vê o que faz”.

Na madrugada, dois adolescentes caminhavam despreocupadamente pelas ruas já silenciadas. Chegavam de um baile promovido na cidade vizinha.  
- Já tinha visto um canhão de luz?
- Não, muito menos dois. Que tecnologia, não? Garanto que dava pra ver os círculos daqui.
- Será? O bagulho não deve ser tão forte assim. 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Lições Pirajuenses*


*Artigo publicado na edição 1150 do Jornal Observador

          Os pirajuenses mostraram que o povo unido é capaz de exercer pressão sobre o poder público. E nem poderia ser diferente: ocupantes de cargos eletivos devem governar e legislar segundo os anseios do povo.

Não é democrático o distanciamento entre população e seus representantes. O uso do termo “autoridade”, inclusive, acaba servindo convenientemente ao propósito desagregador. O indivíduo investido em cargo público é o cidadão propriamente dito alocado nas esferas de poder.

Outra lição vem das redes sociais. Já tínhamos acompanhado a importância desses dispositivos na primeira eleição de Barack Obama e na Primavera Árabe. No entanto, o caso pirajuense trouxe à tona um exemplo local de sua capacidade aglutinadora e catalisadora.   

Registre-se ainda a saudável contribuição entre redes sociais e mídia tradicional. É o caso da publicação neste semanário da “Carta Aberta aos Vereadores de Piraju” de autoria do meu velho amigo e companheiro de estrada Felippe Aníbal.

O texto – que tão perfeitamente sintetizou a indignação pirajuense – surgiu no Facebook e logo chegou à plataforma impressa graças à sensibilidade da equipe do Observador. (Sim, “Peruca”, sua carta cumpriu um papel histórico embora você teime em dizer que foi apenas um desabafo).
           
Apesar das contribuições, o que definitivamente determinou a vitória foi a exemplar mobilização popular. O histórico de lutas em defesa do Paranapanema adquiriu mais robustez e lastro.
           
Se o poder público tende a ser suscetível ao poder econômico, a população provou que não o é. A vigília, no entanto, é eterna.   

domingo, 25 de novembro de 2012

Carta a Belchior*


*Crônica publicada na edição 1148 do Jornal Observador

Caro Belchior. Eu sei que o momento é inoportuno. Todos nós, fãs e admiradores de sua obra, estamos estarrecidos com o enfoque sensacionalista da reportagem veiculada pelo “Fantástico” e com o tom de perseguição deflagrado por ela.

Evidentemente, espanta-nos o fato de citarem o seu nome em função de questões de foro privado quando a sua obra é sabidamente uma das mais importantes da Música Popular Brasileira.

Embora eu não tenha a intenção de defendê-lo (você não precisa disso), me atrevo a refrescar a memória dos desavisados. Quem não conhece – só mencionando as mais batidas – “Como Nossos Pais”, hino de uma geração imortalizada por Elis Regina ou nunca se pegou cantarolando “Medo de Avião” ou “Apenas um Rapaz Latino Americano”?

Bastaria mencionar registros antológicos como “Velha Roupa Colorida” (também gravada por Elis, assim como “Mucuripe”, parceria sua com Fagner), “A Palo Seco”, “Tudo Outra Vez”, “Comentário a Respeito de John”, “Hora do Almoço” e tantas outras canções que integram o hall das mais importantes da história da MPB. Ou ainda a leitura social e crítica de São Paulo revelada em “Fotografia 3X4”, contraponto à visão romântica e poética da “Sampa” de Caetano Veloso.

Bastaria citar discos como “Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo” (1979), ao lado de “Alucinação” (1976) um dos mais importantes de sua carreira, caracterizado pela inovação estética e artística num momento em que a MPB começava a dar sinais de desgaste.

Exemplos da grandeza de sua obra não faltam; falta-me espaço para esmiuçá-la. Caro Belchior: embora seja compreensível a proposta de traduzir sua obra para o espanhol, nós, brasileiros que o temos como patrimônio nacional, gostaríamos de vê-lo nos palcos em breve, mesmo sabendo que você jamais será colocado ao lado de Gil e Caetano.  

Fato que, na atual conjuntura, é mais que um elogio: é um alívio para seus fãs e um salvo-conduto para sua inestimável obra. 




sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Santa chuva*


* Crônica publicada na edição 1140 do Jornal Observador. 

Cabelos longos, vestido comprido. Descalça, ela corre pelas calçadas, dança ao relento, faz movimentos singelos com os braços, rodopia no ar, sorriso sugestivo no rosto. Continua linda: o tempo parece não ter passado para ela.

A cidade se rende ao seu charme, fica à mercê do seu feitiço, absorve o perfume exalado de seu corpo que fica no ar. Mas ela não se deixa levar pelos clamores e segue pelos becos e vielas despretensiosa, pronta para acalentar corpos desavisados.

Por onde passa causa reação. Óbvio, ela continua provocante. Anda com as coxas grossas à mostra e se joga no colo de qualquer um. Seu retorno é sempre motivo de discórdia entre casais. É compreensível: uma concorrente desse porte deixa qualquer mulher com o cabelo em pé. 

Talvez seja seu espírito libertário o que mais incomoda, o desrespeito que ela nutre pelas instituições, o descaso com as convenções sociais, o chegar fora de hora ou o fingir que irá cumprir o horário determinado pelos homens. Nem santa, nem diabólica: simplesmente ela. 

Eu disfarço em público, mas juro que não fico incomodado. Nem quando ela bate na minha janela na madrugada ou vem com a mania tonta de botar as mãos por baixo da minha camisa enquanto me abraça.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Um violeiro toca*

*Crônica publicada na edição nº 1125 do Jornal Observador. Foto by Flávio Mantovani 

Noite fria de junho. No pequeno palco, violas formam um semicírculo ao redor do homem que é o dono da noite. De chapéu, calça jeans surrada e botina de lida, o hábil instrumentista prova que está plenamente conectado à cultura pantaneira tão presente em sua obra. É amparado por músicos competentes, cada um em seu respectivo banquinho, reforçando ainda mais a atmosfera intimista da apresentação.

É a segunda vez que vou a um show de Almir Sater. A primeira foi no ano passado num clube em Santa Cruz do Rio Pardo.  Já o de Cerqueira César é aberto ao público.

Mesmo com tanta gente, a apresentação não perde o clima banquinho e violão, aliás, viola. A parafernália técnica distribuída no palco se resume ao essencial e não há o menor risco de topar com idiotices do tipo “só vocês” ou “joga a mão pra cima e vai”. O intelecto agradece. É que quando a música está em primeiro plano, meu caro, subterfúgios são dispensáveis.  

E que música. Almir Sater funde suas referências regionais ao rock, ao blues, ao folk, arrematando o caldo sonoro com doses vigorosas de virtuosismo.

Embora sua poesia seja igualmente esplendorosa, o violeiro costuma dizer que a melodia, por si só, é algo sagrado. Por isso executa tantos números instrumentais, o que pode chatear quem estava lá só para ouvir os sucessos.

Se como admirador já foi um prato cheio, imagine para um aspirante a músico como eu. Para aproveitar ao máximo a ocasião, coloquei em prática a ousadia de jornalista e acompanhei a apresentação de cima do palco.

Foi um belo batismo para a minha nova Nikon, que debutava na ocasião. 


terça-feira, 15 de maio de 2012

Epitáfio*


Crônica publicada na edição 1120 do Jornal Observador

“Era domingo. Ele apareceu cedo, disse que precisávamos conversar. Mesmo um pouco apreensiva, deixe-o entrar. Ele nunca tinha sido excessivamente violento, exceto em discussões mais acaloradas. Acho que só levei dois ou três tapas durante nosso relacionamento.

Ignorei a orientação do juiz. O que ele poderia fazer? O filho estava dormindo, ele não seria louco de tentar algo. Sentou-se no sofá, calmo como nunca, não implorava o meu perdão e nem tentou me beijar à força. Fiquei um pouco esperançosa, ele parecia conformado. Seria o fim das perseguições e das ligações fora de hora?

Argumentou que estava preocupado: a professora lhe havia dito que o filho parecia confuso sem o pai por perto. Discordei: o menino estava superando o trauma da separação de acordo com a psicóloga. Além disso, ele poderia vê-lo sempre, não seria uma criança sem pai.

Ele retomou o mesmo argumento. Discordei de novo. Eu era a mãe, eu conhecia o atual estado do meu filho, ele não sabia o que estava falando. Olhava profundamente em meus olhos enquanto eu falava (talvez estivesse se despedindo). Calou-se, derrotado em sua proposta de arranjar justificativa para me procurar. Joguei isso na cara dele, eu estava cansada: sempre uma desculpinha para se aproximar.

E parecia resignado quando me atacou subitamente. Foi tudo muito rápido: rolamos no carpete. Ele batia minha cabeça contra o chão enquanto me chamava de vagabunda.

Percebi que, se pudesse, ele teria me batido mais. Queria me subjugar, mostrar que era o dono da situação. Mas, por medo de acordar o filho, ele cumpriu logo seu propósito. Três tiros à queima roupa. Em juízo, alegou crime passional, subterfúgio conveniente para os assassinos.

O covarde fugiu quando ouviu o menino gritar no corredor. Covarde, deixou que o meu filho me visse naquela situação: morta, estirada no carpete da sala.”

*Uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil vítima de violência doméstica segundo o Mapa da Violência de 2010. Fonte: IG.