sábado, 2 de janeiro de 2010

O culpado é o Milton


Fui a Manaus por influência de Milton Hatoum. Há algum tempo eu acompanho semanalmente as crônicas do escritor publicadas no Estadão. Em muitas delas, ele expõe suas reminiscências ligadas à mítica capital do Amazonas, o que aos poucos foi me levantando uma curiosidade surpreendente.

No início do ano encontrei um amigo de longa data numa lanchonete. Conversamos um pouco e ele me informara que prestaria serviço militar em São Gabriel da Cachoeira, que fica a mais ou menos 18 horas de Manaus via barco. Disse ainda pra eu aparecer quando quisesse. Eu disse que iria no final do ano. Mas a conjuntura mudou e ele foi deslocado para outra região.

Lá pelo mês de julho apareceu um outro amigo. Em determinado momento, Manaus entrou espontaneamente na pauta.
- Ei, eu tenho um tio lá e já estou até convidado para ir visitá-lo.

Estava feito o rolo. Hatoum, te mando a conta depois.

Civilização hidráulica

Pretendia refutar o clichê “onde tradição e modernidade se encontram” para descrevê-la mas foi impossível. Manaus é, ao mesmo tempo, um de pólo tecnológico e uma região onde a vida é regida pelo curso das águas. Seis meses na cheia, seis meses na vazante. Os ribeirinhos situados às margens do Rio Negro – que banha a capital – moram em palafitas aparentemente exageradas quando a água está em seu nível mais baixo. Dali para o interior todo o transporte é feito via barco, de passageiros a mercadorias. Tem linha para Parintins, São Gabriel da Cachoeira, Humaitá e dezenas de outras localidades. Para abastecer as milhares de embarcações existentes, há postos de combustível que bóiam no meio do rio, aceitam cartão de crédito e tudo. O cais flutuante evita que a vida pare durante a oscilação das águas.

Já na zona urbana há trânsito caótico, engarrafamentos e buzinadas nervosas a cada segundo. Parece São Paulo. Não existe metrô e o transporte coletivo não é lá “uma maravilha”, palavras dos próprios nativos.

O distrito industrial abriga filial de qualquer marca que se possa imaginar. Pensou em Samsung, tem lá. Pensou em Sony, tem lá. Pensou no diabo a quatro, você vê lá. Durante o passeio por ali me pus a pensar no motivo pelo qual tais empresas estão instaladas numa cidade que é separada do restante do país pela floresta, cujo acesso não é nada fácil principalmente se pensarmos em termos rodoviários. Era um surto bairrista que me atingia naquele momento, refutado logo em seguida ao passarmos pela empresa que produz os cds que nós ouvimos.

Encontro das águas regado à caipirinha de cupuaçu

Encostado no balcão do bar instalado na embarcação, observo a vastidão do Negro. Do meio do rio, é possível avistar centenas de contêineres na região do distrito industrial. Na margem oposta, a floresta se aproxima.

A moça finalmente traz o meu pedido: caipirinha de cupuaçu. Passeio mais um pouco pelo barco a observar o horizonte e colo no bar novamente para experimentar outra iguaria: a exótica caipirinha de taperebá. Minha percepção já está um pouco alterada nessa altura.

O grupo de turistas é variado: há portugueses, australianos, indianos e estadunidenses, além de brasileiros de todas as partes do país. Tinha também um cara da Guatemala com calça jeans preta e chapéu de caubói mesmo naquele calor insuportável.

Puxo conversa com um indiano que vestia uma camiseta do Flamengo (Lá só dá time carioca). A visão limitada do visitante nos leva a priorizar o belíssimo assunto futebol. Mas não é culpa dele, o próprio Brasil trabalha no sentido de reforçar esse estereótipo. Menos mal, a coisa também poderia ter desandado para outros temas incríveis como carnaval, Olimpíadas ou Copa do Mundo.

Felizmente o barco aporta. Já era hora, pois o meu (combalido) inglês estava em vias de não dar conta de levar adiante um assunto que não tenho domínio nem mesmo na minha própria língua. Chegava o momento da caminhada na mata e da visita aos ribeirinhos.

Onde o filho chora e a mãe não vê

São três horas da matina. Manaus ainda vive a ressaca da vitória do Flamengo obtida na noite anterior. Enquanto isso Binho, Carlinhos e eu preparamos a tralha de pesca. O destino é a represa de Balbina, que começa em Presidente Figueiredo ou a cerca de 170 quilômetros da capital.

A estrada – ladeada pela mata – é a mesma que leva a Caracas, capital da Venezuela. Essa é apenas a segunda vez que o carro do Carlinhos pega uma longa distância, afinal não há muitas rodovias. Conforme adentramos a floresta vai se mostrando ainda mais exuberante, reservando paisagens belíssimas mesmo às margens da rodovia.

Seis horas da manhã e já estamos numa comunidade ribeirinha distante 40 quilômetros de Presidente Figueiredo. O acesso se dá unicamente por estrada de terra e o vilarejo não deve ter mais de mil pessoas. Barcos surrados com o logotipo da prefeitura trazem alunos vindos do fundão do Amazonas.

Contratamos o serviço de um nativo para nos levar rio acima numa “voadeira”, barco de madeira tocado por um motor de pouca potência chamado rabeta. Apesar da vastidão, o rio está baixo e há tocos e galhos salientes por todos os lados. O nativo dirige a pequena embarcação por uma tortuosa estrada imaginária. Sabe exatamente por onde deve seguir para não esbarrar em algum obstáculo, mesmo diante de um cenário que parece se repetir trecho a trecho. Pelo caminho cruzamos com dezenas de outras voadeiras que levam nativos para todos os lados. Aqui a floresta amazônica reina absoluta. Não há eletricidade ou sinais de civilização, apenas comunidades de ribeirinhos espalhados em pequenas e abundantes ilhotas. É possivelmente o único lugar do mundo onde pessoas com baixo poder aquisitivo podem se dar ao luxo de ter uma ilha particular.

O nosso piloteiro vacila e batemos num tronco submerso. A pancada seria capaz de jogar alguém na água, o que felizmente não ocorre. Mas a passagem serviu para dar mais emoção ao passeio, sem falar na emoção de ver o barquinho “fazendo água” enquanto o piloteiro tenta amenizar o problema com a ajuda de um pequeno recipiente de plástico.

Finalmente chegamos ao nosso destino: a pousada na mata que seria o ponto de partida para a pescaria de tucunaré.

Pão com banana e caldo de peixe no café da manhã

Chove abundantemente em Manaus. Não há raios ou nuvens carregadíssimas como as que normalmente vemos em dias instáveis, apenas um céu uniformemente acinzentado. E chuva que Deus manda.

Eu e o Binho tentamos nos proteger sob os toldos das lojas situadas no largo da Praça do Relógio. São 8 horas da manhã. O comércio ainda está sonolento e a chuvarada parece esfriar ainda mais os ânimos dos vendedores.

Sem qualquer outra opção viável, me vem a ideia de dar continuidade ao passeio gastronômico e experimentar um legítimo café da manhã manauara. Adentro a espelunca e passo a vista no menu colado à parede. Mas o meu relógio biológico parece não gostar do que vê: pão com banana talvez não mate a fome e caldo de peixe àquela hora da manhã com certeza não seria bem recebido pelo meu estômago.

Opto pelo tradicional pão de queijo acompanhado por um suco de laranja com açúcar e gelo. Sem graça, porém a opção mais segura para quem quer continuar o passeio pelo alagado centro histórico de Manaus sem ser surpreendido por uma suspeita movimentação intestinal.

Continua (talvez)...