quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Uma Conversa - Por Felippe Aníbal

Ele entrava na padaria com uma dignidade inabalável, embora alguns dos clientes torcesse o nariz diante de sua presença, enquanto outros, ainda, simplesmente ignoravam-no. Um tipo magricela e de óculos, que parecia ser o gerente da casa, se precipitou e fez menção de expulsar o homem que àquele instante se recostava ao balcão.

- Não vou sair! E meu direito de ir e vir? - emendou, encurtando conversa.

Trazia um enorme saco plástico preto, repleto de papelão. Metido em uma calça rota e em uma blusa de moletom preta e desbotada, locomovia-se com dificuldade, mancando da perna esquerda. De quando em quando, coçava a longa e grossa barba branca, que lhe dava uma aparência quase que medieval.

- Pode servir um café com leite e um pão com manteiga ao senhor, que eu pago. - disse eu ao magricela de óculos, que me fulminava com o olhar.

Agradecido (mas sem parecer servil), o homem se dirigiu a mim, mostrando as mãos calejadas e sujas, como provas de que era ele um trabalhador. Reclamou com uma das funcionárias pela demora em servir-lhe o desjejum, ao que esta retribuiu com cara de indiferença.

- Sente-se senhor. - sugeri.

- Na mesa com o senhor? - perguntou ele, mas já se acomodando em uma cadeira diante da minha, antes que eu respondesse afirmativamente.

De cara, mostrou-me seus coturnos, relativamente novos, encontrados soterrados em uma lata de lixo. Morava na rua. Naquela mesma manhã, quase fora despertado com um balde de água fria, por dormir sob uma marquise, tentando se proteger do frio com os papelões que catava para revender à reciclagem. Contou-me que chegara a ficar quinze dias sem comer (ao que eu prontamente protestei e acusei ser uma inverdade), que perambulava de uma cidade a outra sem motivo aparente. Ficar em um mesmo lugar por muito tempo, fazia sentir-se aprisionado. Queria que sua alma gozasse do direito de ir e vir.
Enfim, uma das empregadas serviu-lhe, forçando-se para parecer simpática. Ele deu de ombros. Comeu com a voracidade de quem tem fome, enquanto farelos do pão incrustavam-se entre os fios espessos de sua barba.
De relance, percebi que todos olhavam para a mesa em que estávamos. O homem também percebeu e fez um breve discurso contra o preconceito, falou sobre a efemeridade da vida e sobre a pequenez do pensamento daquelas pessoas. Entretanto, calou-se no meio de um pensamento. Do saco, tirou um livro grosso, de capa dura. Decamerão, de Bocaccio.

- Falta-lhes leitura! - sentenciou.

Não me lembro do restante da conversa. Creio que nem seja necessário.