sexta-feira, 23 de abril de 2010

No ouvido de José*

*Crônica publicada na edição 1027 do Jornal Observador

Indignado, um estudante pede a palavra.
- Com todo o respeito que tenho pelos mais velhos, quem delegou ao senhor o direito de criticar gratuitamente a Igreja e a religião? O senhor não tem outra atividade mais produtiva para desenvolver a não ser viajar pelo mundo criticando aquilo que não lhe diz respeito?

Parte da plateia demonstra pronta indignação diante da indelicadeza do participante. Sem exteriorizar qualquer hesitação, o senhor – José Saramago – acena com as mãos para que o público se acalme, como se sugerisse a todos que não precisaria de defesa ou complacência de quem quer que fosse.

Aplacados os ânimos, Saramago retoma o microfone ainda com mais calma do que antes.
- Mesmo que me tivessem delegado algo, uma coisa é certa: esse direito não seria originário do grupo ao qual você provavelmente pertence. Se assim fosse, eu estaria a andar pelo mundo utilizando a religião para justificar atrocidades.

O burburinho imediato na plateia indicava que o inimigo perdera a batalha. Saramago, mais uma vez, buscou anular qualquer hostilidade que pudesse ser dirigida contra o estudante e deu continuidade ao debate.

Finda a apresentação, tomou um voo e em poucas horas já estava em casa. Jantou com a esposa e, após organizar por algum tempo uma pilha de manuscritos, sentou-se à cama.

Enquanto tirava os sapatos com certa dificuldade, observara que Pilar já dormia. O Senhor então lhe observou:
- Foste reto e coerente mais uma vez, José. Tens galgado a passos largos os degraus da Sabedoria.
- Obrigado senhor, os anos de vida têm me trazido benesses ao Espírito.

E, aproximando-se, Deus confidenciou-lhe algo nos ouvidos. Saramago ficou pensativo por alguns minutos e pensou em acordar a mulher para anunciar o tema de seu próximo romance. Porém Pilar parecia imersa num sono tão profundo que ele resolveu esperar o dia seguinte. “Haverá muito tempo amanhã”, avaliou.

E adormeceu enquanto rezava mentalmente um padre-nosso.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Despedida

Camila reconduz para trás da orelha a franja que grudara em sua boca por causa do caminhar apressado que sacolejava o seu corpo. Tem ainda em mente o ruído recente oriundo do fechar brusco de uma porta.

Não olha para trás. O único resquício com o já passado está em imaginar, mais por curiosidade do que por maldade, como sua partida repentina será assimilada. Ao mesmo tempo, se questiona se está agindo de maneira correta, se não seria melhor acabar tudo formalmente, civilizadamente como fazem os casais normais. Acontece que provavelmente iria suceder o mesmo das outras crises: ele iria se esvair em lágrimas, prometer mudar e lhe dar mais atenção, além de propor um jantar romântico num restaurante qualquer para demonstrar sua disposição em se regenerar. Ela, mais uma vez, iria aceitar embora já soubesse que nada daquilo era verdade e que o armistício não chegaria ao próximo final de semana.

De qualquer forma, o mais provável é que ele nem vá notar a casa vazia. Continuaria indiferente, como sempre fora, à sua existência. Talvez só desse falta lá pelas 20 horas, horário em que ela normalmente chegava da academia. Ainda assim permaneceria um bom tempo entretido em planilhas armazenadas no notebook ou então concentrado nas séries policiais daquele canal a cabo e só ligaria depois das 10 da noite, preocupado se ela se metera em algum acidente que pudesse ter causado algum dano ao carro.

Como ele havia mudado nesses poucos anos de convivência sob o mesmo teto. Transformara-se num troglodita, impaciente enquanto ela se vestia e neurótico nas crises idiotas de ciúmes em festas ou barzinhos, enquanto ela era obrigada a tolerar o seu olhar devorador em cima de qualquer mulher que passasse por perto.

Como se permitiu chegar a essa situação? Deveria ter reparado na índole dele ainda durante o namoro. E rememorava as inúmeras vezes em que ele ligava no sábado à tarde para avisar que iria pegá-la para um passeio. Ela se arrumava, se perfumava, preparava o cabelo, escolhia uma roupa legal e se prostrava à sua espera. Mas o passeio – quase sempre – tinha o único intuito de encaminhá-la para “ajudar” na organização do churrasco da família ou dos amigos futeboleiros dele. Ainda assim, ela frequentemente levava a fama de vagabunda da matriarca da casa, que reportava publicamente ao filho a ineficiência e a má vontade da futura nora.

Como fora tola tantas vezes. Deveria ter botado sal no prato da velha a fim de causar-lhe um infarto fulminante. Mas, principalmente, não deveria ter resistido aos flertes descarados daquele amigo dele sempre presente nesses eventos. Deveria tê-lo beijado (mesmo sem vontade) na frente de todos e assim causar uma hecatombe no seio daquela família.

Pensou melhor. Não gostaria de ter qualquer atitude que se assemelhasse à índole dele.