segunda-feira, 27 de junho de 2011

Caminhos*

*Crônica publicada na edição 1076 do Jornal Observador

A possibilidade de subirmos a pé até Machu Picchu me deixou preocupadíssimo. Enfrentar um desconhecido caminho montanhoso sob o frio da madrugada talvez não fosse uma ideia muito inteligente. Além disso, poderíamos ficar à mercê de ladrões e criminosos.

Mas, conforme o esperado, meus argumentos não convenceram e fui voto vencido na assembleia realizada durante o jantar em Águas Calientes, cidade situada a oito quilômetros da histórica cidade dos incas. Zé Renato, Felippe e Albino optaram pelo óbvio: ir até Machu Picchu caminhando seria muito mais simbólico. Eu também achava isso, só não queria chegar lá cansado e não perder a chance de apreciar o local. Albino, um professor aposentado de 62 anos natural de Viçosa, Minas Gerais, havia sido integrado ao grupo em La Paz.

Se a decisão da maioria contribuiu de maneira significativa para que aquela refeição não fosse das mais proveitosas, o aspecto do prato principal também não colaborou muito: o cuy assado, espécie de porquinho da índia considerado uma iguaria no Peru, é servido inteiro, inclusive com as patinhas retorcidas pelo fogo.

Partimos às 4h20 da manhã e ao contrário das minhas previsões encontramos poucos turistas no trajeto, o que traria certa segurança caso ficássemos perdidos. Mas nem foi necessário: o caminho até o cume é muito bem sinalizado e de fácil visualização mesmo na penumbra. Também não havia perigo de assalto, apenas desfiladeiros e escadarias infinitas no meio da mata que supostamente eram atalhos.

De súbito, Machu Picchu emerge depois de um pequeno caminho cercado por vegetação nativa. A visão é impactante e, óbvio, emociona. Depois de quase vinte dias de estrada, estar na cidade perdida dos incas representou o encerramento de um ciclo. O lugar é carregado de mística não apenas por simbolizar a opulência cultural daquele povo, mas também por ter passado incólume pela colonização espanhola (Machu Picchu só foi descoberta há cem anos). Representa, portanto, a resistência contra a imposição cultural do colonizador, sentimento ainda presente entre os nativos todavia sem conotação xenofóbica.

Pude constatar isso através da exposição de nosso guia turístico. Ele contestou a historiografia oficial que atribui ao pesquisador estadunidense Hiram Bringman o descobrimento de Machu Picchu. De acordo com o guia, um historiador peruano teria sido o primeiro acadêmico a chegar ali embora a população da região já soubesse da existência da localidade há séculos. Ocorre que Bringman teria ficado com a fama após coagir um nativo a levá-lo até as ruínas escondidas entre a vegetação.

Até hoje o Peru luta para reaver peças e artefatos usurpados pelos estadunidenses naquele período.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Segregados no Deserto*

*Crônica publicada na edição 1075 do Jornal Observador

Os israelenses têm um costume interessante: logo após o serviço militar – obrigatório para ambos os sexos – os jovens recém saídos das forças armadas viajam o mundo. O objetivo é conhecer outras culturas e ampliar os horizontes antes do ingresso na universidade. Isso parece explicar a enorme presença de turistas israelenses na América Latina. No entanto, contato com outras culturas pode não significar necessariamente interação conforme pudemos observar “in loco” nos três dias de passeio pelo deserto boliviano.

Estamos na região de Uyuni, que além da belíssima planície de sal congrega ainda paisagens áridas, picos nevados, vulcões inativos e lagoas coloridas. Nossa comitiva, a bordo de veículos 4X4, é composta pelo grupo de Israel (cerca de 12 pessoas), nós três, uma inglesa e um neozelandês.

Já na primeira noite ficamos à margem do grupo majoritário. Assim como eu, Felippe e Zé Renato, os israelenses também viajavam juntos, então nada mais natural que permanecessem juntos (Nota: apesar do distanciamento eles foram cordiais conosco nos poucos momentos em que trocamos palavras).

Sob o frio noturno do deserto, num alojamento em que a eletricidade era cortada depois das 10 horas da noite, deparamos-nos à mesa do jantar com a inglesa e o neozelandês, ambos igualmente deslocados em relação à maioria. Iniciava ali – à base de sopa e vinho – nosso grupinho ocasional, apesar de alguns tropeços no quesito língua.

Novas interações surgiriam na noite seguinte, no remoto e desértico povoado de San Cristobal. Eu terminava a refeição quando três turistas sorridentes ocuparam a mesa ao lado. Curiosamente os recém chegados também não pertenciam à faixa etária dos colegas de Israel, situada em torno de 21 anos. Como havia um cabeludo entre eles perguntei sobre um violão. Nada. Sem qualquer outra coisa mais interessante a fazer, fui dormir.

Horas depois ao acender a luz do quarto quando eu já estava em avançado estado de sonolência, Felippe explicou que eram uruguaios e profundos conhecedores da história do continente. Zé Renato e ele haviam proseado com os hermanos até a madrugada, interação que incluiu tópicos como imperialismo estadunidense, perspectivas políticas da América Latina no século 21 e música popular brasileira. Enquanto eu ouvia o relato fui apresentado a Alejandro, o cabeludo que vivera em Ubatuba por seis meses e que passara em nosso quarto para dar um olá antes de se recolher definitivamente. Na manhã seguinte os uruguaios continuariam a expedição (a rota deles era a mesma que a nossa, porém em sentido inverso).

Aquele episódio teria sido apenas uma passagem agradável fadada ao esquecimento caso não tivéssemos encontrado os uruguaios por acaso em La Paz, dias depois. Começava ali uma forte identificação que aprofundaria a simbologia implícita naquela viagem.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

No Trem da Morte*

*Crônica publicada na edição 1074 do Jornal Observador

Tomávamos um café em Corumbá quando soubemos da morte de Bin Laden. A informação veio por meio de uma piada que envolvia o nome do homem mais procurado do mundo que nos foi contada pelo dono do estabelecimento. Entreolhamos-nos, espantados. O proprietário percebeu.
- Então não sabem que o líder da Al Qaeda foi morto? – perguntou, embora nem precisasse. Era apenas o segundo dia de viagem e já iniciávamos a trajetória rumo a uma dimensão paralela, na qual permaneceríamos alheios ao “mundo real” por um bom tempo.

Corumbá é passagem obrigatória para quem pretende enfrentar o famoso Trem da Morte, que vai até Santa Cruz de La Sierra. Toma-se o comboio em Porto Quijaro, a primeira cidade boliviana depois da fronteira com o Mato Grosso do Sul. Embora estejam em países diferentes, Corumbá e Porto Quijaro parecem pertencer ao mesmo território: o fluxo de turistas é intenso.

Na fronteira demos com a cara na porta: o departamento de imigração boliviano estava fechado. O motivo: a transferência do feriado do Dia do Trabalho para segunda-feira, o que nos forçou a voltar ao Brasil e pernoitar em Corumbá. Carimbados os passaportes no dia seguinte, tomamos um táxi até a bilheteria. Ao contrário das informações colhidas na internet, não fomos importunados por cambistas (os relatos apontavam que os negociantes informais praticam terrorismo psicológico, coagindo o turista a comprar bilhetes sob a justificativa de que não haveria outros assentos disponíveis).

O fatídico Trem da Morte – supostamente reduto de traficantes e bandidos em fuga – é tão perigoso quanto uma maternidade durante a madrugada. Das 11 da manhã até as seis da tarde nosso vagão transportou quatro pessoas: eu, Felippe Aníbal, Zé Renato – ambos companheiros de mochila – e uma senhora bonachona que afirmou ser contrária ao governo de Evo Morales. Os passageiros só começariam a surgir bem longe, na medida em que o trem ia adentrando o interior do país.

Nos vilarejos crianças e adultos disputam a atenção dos viajantes na tentativa de vender água, suco, marmitas e iguarias como chirimoya, uma fruta que até agora não conseguimos identificar. A entonação característica dos vendedores soa como um mantra e chega a ser divertido apreciar aquela confusão oral que se instala a cada parada.

Morte no trem só se for de tédio: o comboio demora mais de 19 horas para superar meros 600 quilômetros. Entretanto o contato com a cultura nativa ameniza esse pequeno detalhe, assim como a vista do pantanal boliviano. À noite a graça é apreciar o céu estrelado. Passei boa parte da noite entoando mentalmente “Trem do Pantanal”, canção que cita a cidade para qual nos dirigíamos e o Cruzeiro do Sul, assim como o famoso meio de transporte.

Chegamos em Santa Cruz de La Sierra, por volta das seis e meia da manhã, com a mesma impressão: a Bolívia é um lugar propício para a quebra de mitos, tabus e estereótipos. Só quando saímos da rodoviária com destino a Sucre descobrimos algo estarrecedor: viajar de ônibus é que pode ser uma tarefa arriscada.