quarta-feira, 19 de maio de 2010

O capoeira*

*Crônica publicada na edição 1021 do Jornal Observador

Mancomunados, os três – um civil, um policial local e um policial da capital que visitava sua cidade natal – chegaram ao bar. Fizeram um sinal ao dono do estabelecimento e apontaram discretamente para a vítima: um negrinho franzino que tomava sua cota de pinga num canto inabitado do boteco, longe da badalação do ambiente.

Retirante que se fixara na região para trabalhar na colheita de algodão, o negrinho não imaginava que era o escolhido do dia para dar vazão à monotonia dominical daquela cidade do interior quando assuntou a aproximação dos três desconhecidos e, junto com eles, os olhares sarcásticos dos demais frequentadores do local, ávidos por uma boa briga, coisa que há muito tempo não ocorria por ali.

Mas, ao contrário do esperado, o negrinho não reagiu à voz de prisão, minando de uma vez por todas qualquer expectativa de tumulto generalizado. Xeque-mate: os arrumadores de confusão eram colocados à prova pela primeira vez. Com a batata quente na mão, o policial titular se viu na obrigação de prender de verdade o desconhecido na medida em que os botequeiros de plantão vaiavam a atuação frustrada da comitiva e retornavam ao balcão, zombando da autoridade local.

Restava então passar uma descompostura no negrinho para lhe ensinar a não folgar na cidade dos outros e, principalmente, a não desmoralizar autoridades perante os seus subordinados.

Já na delegacia, sentado numa cadeira no meio da cela e algemado com as mãos para trás, o negrinho reverteu o jogo – de novo – ao se safar de um “copinho” aplicado pelas costas. Lançando o corpo no ar, conseguiu trazer as mãos algemadas para frente do corpo depois de encolher as pernas o suficiente para alcançar tal êxito.

E então o pau comeu, e não havia lugar naquele cubículo que estivesse imune dos pés velozes do negrinho. Atônito, o civil que sabiamente havia permanecido fora da cela assistia à cena perplexo: uma sucessão de golpes e voadoras que sequer permitia que os militares recuperassem o fôlego ou permanecessem em pé. A tragédia só não foi maior porque o policial titular tinha deixado o revólver sobre uma mesa também do lado de fora da cela, juntamente com o espectador privilegiado.

No dia seguinte, um decreto informal foi baixado por um sujeito fardado e com três costelas quebradas: a brincadeira nos botecos estava suspensa por tempo indeterminado.