terça-feira, 30 de agosto de 2011

Compêndio sobre a existência*

*Crônica publicada na edição 1085 do Jornal Observador

Fixada sobre uma estrutura estranha está a Vida. De longe sua base parece firme, sedimentada em concreto armado, construída para durar infinitamente. Mas de perto é outra história: é sustentada apenas por vigas muito finas.

Sua temporalidade é determinada pela capacidade que essa estrutura frágil tem de suportar as peripécias e as adversidades. Às vezes as vigas entortam de tal forma que o rompimento parece iminente, inevitável. E então vem a surpresa: a Vida prospera novamente, emerge dos cacos da tragédia.

Mas nem sempre é assim. Há casos em que a Vida é pega de surpresa e nem tem tempo de reagir. É o Acaso, que trama contra tudo e contra todos. Ele está presente na ligação incômoda no meio da noite, no automóvel que avança a faixa enquanto o pedestre a atravessa, no diagnóstico inesperado, no olhar do filho que não será abraçado de novo.

Há aquele que pretende evitá-lo. Recorre a uma redoma e passa a viver fechado, protegido do mundo externo por uma bolha de plástico. Doce ilusão. O Acaso está em todo lugar e ninguém está imune. Um dia a bolha explode.

Quando não explode, o recluso percebe algo estarrecedor: perdera o trem da Vida enquanto tentava evitar o desconhecido, o novo, o adverso. Percebe que foi um mero espectador e não um protagonista de sua própria existência. Agora é tarde demais, a Vida dá seu último sopro. É o Acaso de novo surpreendendo até mesmo no leito de morte.

Os que têm um pouco de sorte ainda têm tempo para aprender uma última lição: Vida e Acaso são parte da mesma matéria e andam de mãos dadas. Fugir de ambos é fugir da própria existência.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Operação Lua Cheia*


* Crônica publicada na edição 1084 do Jornal Observador

O texto abaixo é verídico e foi escrito nos anos 60 pelo cientista paulistano Milton Octavio Ramirez, integrante do Núcleo de Estudos Paranormais da Universidade de São Paulo (USP).

Com o objetivo de estudar o mito do lobisomem, o estudioso percorreu o interior de São Paulo coletando relatos de moradores e indícios sobre a aparição da criatura. Era a chamada “Operação Lua Cheia”, projeto que os militares tentaram boicotar e ocultar da população durante a ditadura.

O resultado da pesquisa foi mantido em sigilo até recentemente embora o mundo acadêmico já tivesse conhecimento dela há décadas. A íntegra do documento está disponível na biblioteca da USP.

“Pode-se afirmar que lobisomem é europeu. Ele chegou com os primeiros imigrantes italianos. É neste grupo social e em seus descendentes que os relatos são mais facilmente encontrados.

Popularmente o surgimento do lobisomem está relacionado ao mito da maldição do sétimo filho. Essa tese, porém, não tem respaldo científico. A hipótese mais plausível, obtida por meio de análise laboratorial em vestígios deixados pela criatura, sugere a existência de uma anomalia genética que, em função de determinados estímulos externos, deflagra imediatas transformações físicas no corpo de seu portador.

Todavia, autópsia realizada em animais domésticos supostamente vitimados pela entidade descartou atividade humana mesmo em eventual estado alterado. Os padrões das perfurações encontradas nos cadáveres são incompatíveis com qualquer objeto humano existente na região.

As aparições estão geograficamente localizadas no interior do estado, predominantemente na zona rural. A cultura popular afirma que o mítico ser aparece em noite de lua cheia mas essa especificidade não é necessariamente verdadeira. Ocorre que a claridade da referida fase lunar facilita um eventual avistamento da criatura.

Aspectos físicos. Comumente atribui-se ao lobisomem uma morfologia híbrida, localizada entre homem e lobo. No entanto é difícil mensurar qual aspecto prevalece. Há relatos em que a figura aparece como um cão enorme. Outras testemunhas apontam que a entidade tem o aspecto quase humano, diferenciando-se apenas em função da presença de presas e garras descomunais.

O lobisomem utiliza um modo peculiar de locomoção para um quadrúpede. Ele introduz as mãos fechadas na boca, acomodando-as na região interna da maça do rosto, e utiliza os cotovelos como patas dianteiras. Desse modo a criatura fica curvada, ou seja, cabeça e tórax mais próximos do solo em relação ao quadril, diferentemente do alinhamento dos quadrúpedes comuns. Mesmo nessa postura aparentemente desconfortável ele é capaz de atingir cerca de 40 quilômetros por hora, haja vista as perseguições noturnas descritas por cavaleiros da região.

Moradores do distrito de Domélia, zona rural de Agudos, apontam que o ser ronda as casas da localidade com frequência. O último avistamento teria ocorrido há menos de uma semana. A moradora Isabel Aparecida do Prado Reis revelou que o marido foi obrigado a tapar as pequenas aberturas da residência de madeira por causa do temor que a criatura causa nas crianças. “Elas podiam vê-lo através das frestas”, afirma.

A moradora revelou outro dado interessante: a aparição mais consistente ocorrera exatamente na noite do nascimento de seu sétimo filho.”

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Jovem Demais Para Morrer*

* Crônica publicada na edição 1082 do Jornal Observador

Depois de permanecer por alguns minutos sentada à beira da cama, meio cambaleante, ela já não é mais capaz de sustentar o próprio corpo. Desaba, por sorte, sobre o leito. Nada de visual extravagante: veste jeans e camiseta branca como usualmente faz quando está em casa.

Impossível pegar no sono. Um violento tremor toma conta de seus braços e pernas. Seu cérebro gira. O teto, as cortinas, a mobília, o quarto todo está rodando. Seu corpo franzino, que por muitas vezes suportou os excessos, finalmente chegou ao limite. Não há ninguém ao seu lado. Ironicamente a estrela está só.

O colapso se instala. A respiração fica cada vez mais difícil. Ela arqueja desesperadamente em busca de oxigênio. É inútil: está sufocando. Os olhos esbugalhados suplicam por socorro. Mesmo ébria, ela tem medo. Teme por saber que provavelmente não verá a luz do dia de novo. Teme por estar sozinha. Teme por sentir que está sendo sugada por um redemoinho que acabara de surgir debaixo da cama. Ela não pode vê-lo, não tem forças para mirá-lo, mas sente que ele está ali, ruidoso. Tenta gritar mas só consegue emitir um gemido grave e abafado, o último movimento que seu corpo irá protagonizar conscientemente.

Uma pressão repentina no tórax elimina o resto de consciência que lhe sobrara. Os tremores se acentuam, estão mais intensos e ininterruptos. Seus olhos agora estão horrorosamente virados, os músculos do pescoço empurram a cabeça violentamente contra o travesseiro, a face descomposta. Em sua agonia, ela emite um ruído que não parece humano.

Finalmente a crise cessa. Resta apenas um corpo afundado na cama, imóvel. Seus lábios revelam um roxo vivo. Ao redor da boca há um líquido espumoso e resíduos sólidos expelidos por causa da violência dos espasmos.

Em poucos segundos o segurança vai entrar e, em desespero, ligar para a emergência. Tarde demais.