terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Lições Pirajuenses*


*Artigo publicado na edição 1150 do Jornal Observador

          Os pirajuenses mostraram que o povo unido é capaz de exercer pressão sobre o poder público. E nem poderia ser diferente: ocupantes de cargos eletivos devem governar e legislar segundo os anseios do povo.

Não é democrático o distanciamento entre população e seus representantes. O uso do termo “autoridade”, inclusive, acaba servindo convenientemente ao propósito desagregador. O indivíduo investido em cargo público é o cidadão propriamente dito alocado nas esferas de poder.

Outra lição vem das redes sociais. Já tínhamos acompanhado a importância desses dispositivos na primeira eleição de Barack Obama e na Primavera Árabe. No entanto, o caso pirajuense trouxe à tona um exemplo local de sua capacidade aglutinadora e catalisadora.   

Registre-se ainda a saudável contribuição entre redes sociais e mídia tradicional. É o caso da publicação neste semanário da “Carta Aberta aos Vereadores de Piraju” de autoria do meu velho amigo e companheiro de estrada Felippe Aníbal.

O texto – que tão perfeitamente sintetizou a indignação pirajuense – surgiu no Facebook e logo chegou à plataforma impressa graças à sensibilidade da equipe do Observador. (Sim, “Peruca”, sua carta cumpriu um papel histórico embora você teime em dizer que foi apenas um desabafo).
           
Apesar das contribuições, o que definitivamente determinou a vitória foi a exemplar mobilização popular. O histórico de lutas em defesa do Paranapanema adquiriu mais robustez e lastro.
           
Se o poder público tende a ser suscetível ao poder econômico, a população provou que não o é. A vigília, no entanto, é eterna.   

domingo, 25 de novembro de 2012

Carta a Belchior*


*Crônica publicada na edição 1148 do Jornal Observador

Caro Belchior. Eu sei que o momento é inoportuno. Todos nós, fãs e admiradores de sua obra, estamos estarrecidos com o enfoque sensacionalista da reportagem veiculada pelo “Fantástico” e com o tom de perseguição deflagrado por ela.

Evidentemente, espanta-nos o fato de citarem o seu nome em função de questões de foro privado quando a sua obra é sabidamente uma das mais importantes da Música Popular Brasileira.

Embora eu não tenha a intenção de defendê-lo (você não precisa disso), me atrevo a refrescar a memória dos desavisados. Quem não conhece – só mencionando as mais batidas – “Como Nossos Pais”, hino de uma geração imortalizada por Elis Regina ou nunca se pegou cantarolando “Medo de Avião” ou “Apenas um Rapaz Latino Americano”?

Bastaria mencionar registros antológicos como “Velha Roupa Colorida” (também gravada por Elis, assim como “Mucuripe”, parceria sua com Fagner), “A Palo Seco”, “Tudo Outra Vez”, “Comentário a Respeito de John”, “Hora do Almoço” e tantas outras canções que integram o hall das mais importantes da história da MPB. Ou ainda a leitura social e crítica de São Paulo revelada em “Fotografia 3X4”, contraponto à visão romântica e poética da “Sampa” de Caetano Veloso.

Bastaria citar discos como “Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo” (1979), ao lado de “Alucinação” (1976) um dos mais importantes de sua carreira, caracterizado pela inovação estética e artística num momento em que a MPB começava a dar sinais de desgaste.

Exemplos da grandeza de sua obra não faltam; falta-me espaço para esmiuçá-la. Caro Belchior: embora seja compreensível a proposta de traduzir sua obra para o espanhol, nós, brasileiros que o temos como patrimônio nacional, gostaríamos de vê-lo nos palcos em breve, mesmo sabendo que você jamais será colocado ao lado de Gil e Caetano.  

Fato que, na atual conjuntura, é mais que um elogio: é um alívio para seus fãs e um salvo-conduto para sua inestimável obra. 




sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Santa chuva*


* Crônica publicada na edição 1140 do Jornal Observador. 

Cabelos longos, vestido comprido. Descalça, ela corre pelas calçadas, dança ao relento, faz movimentos singelos com os braços, rodopia no ar, sorriso sugestivo no rosto. Continua linda: o tempo parece não ter passado para ela.

A cidade se rende ao seu charme, fica à mercê do seu feitiço, absorve o perfume exalado de seu corpo que fica no ar. Mas ela não se deixa levar pelos clamores e segue pelos becos e vielas despretensiosa, pronta para acalentar corpos desavisados.

Por onde passa causa reação. Óbvio, ela continua provocante. Anda com as coxas grossas à mostra e se joga no colo de qualquer um. Seu retorno é sempre motivo de discórdia entre casais. É compreensível: uma concorrente desse porte deixa qualquer mulher com o cabelo em pé. 

Talvez seja seu espírito libertário o que mais incomoda, o desrespeito que ela nutre pelas instituições, o descaso com as convenções sociais, o chegar fora de hora ou o fingir que irá cumprir o horário determinado pelos homens. Nem santa, nem diabólica: simplesmente ela. 

Eu disfarço em público, mas juro que não fico incomodado. Nem quando ela bate na minha janela na madrugada ou vem com a mania tonta de botar as mãos por baixo da minha camisa enquanto me abraça.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Um violeiro toca*

*Crônica publicada na edição nº 1125 do Jornal Observador. Foto by Flávio Mantovani 

Noite fria de junho. No pequeno palco, violas formam um semicírculo ao redor do homem que é o dono da noite. De chapéu, calça jeans surrada e botina de lida, o hábil instrumentista prova que está plenamente conectado à cultura pantaneira tão presente em sua obra. É amparado por músicos competentes, cada um em seu respectivo banquinho, reforçando ainda mais a atmosfera intimista da apresentação.

É a segunda vez que vou a um show de Almir Sater. A primeira foi no ano passado num clube em Santa Cruz do Rio Pardo.  Já o de Cerqueira César é aberto ao público.

Mesmo com tanta gente, a apresentação não perde o clima banquinho e violão, aliás, viola. A parafernália técnica distribuída no palco se resume ao essencial e não há o menor risco de topar com idiotices do tipo “só vocês” ou “joga a mão pra cima e vai”. O intelecto agradece. É que quando a música está em primeiro plano, meu caro, subterfúgios são dispensáveis.  

E que música. Almir Sater funde suas referências regionais ao rock, ao blues, ao folk, arrematando o caldo sonoro com doses vigorosas de virtuosismo.

Embora sua poesia seja igualmente esplendorosa, o violeiro costuma dizer que a melodia, por si só, é algo sagrado. Por isso executa tantos números instrumentais, o que pode chatear quem estava lá só para ouvir os sucessos.

Se como admirador já foi um prato cheio, imagine para um aspirante a músico como eu. Para aproveitar ao máximo a ocasião, coloquei em prática a ousadia de jornalista e acompanhei a apresentação de cima do palco.

Foi um belo batismo para a minha nova Nikon, que debutava na ocasião. 


terça-feira, 15 de maio de 2012

Epitáfio*


Crônica publicada na edição 1120 do Jornal Observador

“Era domingo. Ele apareceu cedo, disse que precisávamos conversar. Mesmo um pouco apreensiva, deixe-o entrar. Ele nunca tinha sido excessivamente violento, exceto em discussões mais acaloradas. Acho que só levei dois ou três tapas durante nosso relacionamento.

Ignorei a orientação do juiz. O que ele poderia fazer? O filho estava dormindo, ele não seria louco de tentar algo. Sentou-se no sofá, calmo como nunca, não implorava o meu perdão e nem tentou me beijar à força. Fiquei um pouco esperançosa, ele parecia conformado. Seria o fim das perseguições e das ligações fora de hora?

Argumentou que estava preocupado: a professora lhe havia dito que o filho parecia confuso sem o pai por perto. Discordei: o menino estava superando o trauma da separação de acordo com a psicóloga. Além disso, ele poderia vê-lo sempre, não seria uma criança sem pai.

Ele retomou o mesmo argumento. Discordei de novo. Eu era a mãe, eu conhecia o atual estado do meu filho, ele não sabia o que estava falando. Olhava profundamente em meus olhos enquanto eu falava (talvez estivesse se despedindo). Calou-se, derrotado em sua proposta de arranjar justificativa para me procurar. Joguei isso na cara dele, eu estava cansada: sempre uma desculpinha para se aproximar.

E parecia resignado quando me atacou subitamente. Foi tudo muito rápido: rolamos no carpete. Ele batia minha cabeça contra o chão enquanto me chamava de vagabunda.

Percebi que, se pudesse, ele teria me batido mais. Queria me subjugar, mostrar que era o dono da situação. Mas, por medo de acordar o filho, ele cumpriu logo seu propósito. Três tiros à queima roupa. Em juízo, alegou crime passional, subterfúgio conveniente para os assassinos.

O covarde fugiu quando ouviu o menino gritar no corredor. Covarde, deixou que o meu filho me visse naquela situação: morta, estirada no carpete da sala.”

*Uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil vítima de violência doméstica segundo o Mapa da Violência de 2010. Fonte: IG.


segunda-feira, 12 de março de 2012

Viola*

*Crônica publicada na edição 1107 do Jornal Observador

Chegou e se acomodou no meu peito. Mas não foi assim do dia pra noite não. Foi se aproximando bem devagar, sorrateiramente, como quem não quer nada.

Rodeou, hesitou, afastou-se. Aproximou-se de novo e sumiu do mapa. Ficou uma temporada assim, sabe-se lá onde.

Deu as caras de novo tempos depois, quando eu já morava em Bauru. Ironicamente, foi na cidade grande (?) que ela bateu forte, como se quisesse suprir aquela saudade da terra natal, a vontade de pescar ou participar de uma rodada de boia no velho Pardo.

Lá, em plena vida urbana, a viola revelou o sertão que vive dentro de mim. Compreendi definitivamente o que Guimarães Rosa já havia sussurrado no meu ouvido: sou do interior, mas também sou cidadão do mundo.

Engana-se o leitor ao achar que ela veio simplória e desafinada. Apresentou-se assim à primeira vista, porém trouxe elementos que eu desconhecia.

Provou que não era um instrumento defasado como crê o senso comum. Provou que tinha “leitura”, sensibilidade e mais familiaridade com Bach e Beatles que muito pretenso conhecedor de música. Limitação, portanto, é propriedade do tocador, não do instrumento.

Viola é uma entidade, tem vida própria. Fascina roqueiros, bluseiros e jazzistas. A guitarra é um instrumento de força, porém sua imagem está colada à figura do músico (a cena em que Hendrix ateia fogo à sua Fender, por exemplo, é bem ilustrativa). Já a viola é autossuficiente. Quem é o violeiro? Não importa.

Tem uma incrível e singular capacidade de fascinar o caipira e o diplomata, o médico e o pedreiro. Chega a tocar o coração de quem, inclusive, é indiferente à música. Quando ela toca o mundo pára – mesmo que por apenas um segundo; seu ponteio fisga a alma.

Mesmo com essa capacidade, a viola sempre foi modesta e sua presença nunca tentou reprimir meu amor primeiro, a guitarra. Prova cabal de que é segura de si e não vê o diferente como ameaça e sim como algo que pode acrescentar mais sabor e cor à existência.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Paixão*

* Crônica publicada na edição 1104 do Jornal Observador

Foi amor à primeira vista. Desde pequeno, eu corria ao seu encontro toda vez que tinha uma chance. Ela me abraçava com fervor, me envolvia completamente em seus braços, atravessava a camiseta e escorria as mãos pelas minhas costas. Não tinha pudor: se eu permitisse, ela tocaria todo o meu corpo.

Meus pais não aprovavam aquele comportamento, ralhavam comigo quando eu chegava naquela situação, ofegante, embebido naquela voluptuosidade. Aquela entrega rotineira poderia me prejudicar, diziam, comprometeria meu futuro.

Ela era minha, mas também era de todos. Eu a via desfilar pela cidade: não menosprezava ninguém, bastava estar aberto às suas carícias. Bêbados ao relento, senhoras, crianças, moças, homens casados, todos eram dignos de seu amor incondicional.

Não tinha hora para aparecer e nunca respeitou convenções sociais. Para alguns, ela representava a mais pura alegria; para outros significava perdas, choro e ranger de dentes.

A maturidade fez com que eu ficasse mais prudente. Encontrávamos-nos no quintal de casa e não mais na rua, à vista de todos, para evitar comentários maliciosos.

Às vezes, quando eu a ignorava, ela batia na minha janela, ameaçava entrar, mas permanecia do lado de fora, sem qualquer ressentimento. Eu ainda a amava, mas já não era um brinquedo seu como no passado. Eu tinha me transformado num adulto, com todas as limitações que isso implica.

Todavia, ainda fico pensativo quando ela some. Continuo debruçado na janela, olhando o horizonte, à sua espera. Deve estar por aí, mundo afora, abraçando outros homens, tocando outros corpos, revelando a outras bocas o seu beijo molhado.

E mesmo que eu não me entregue a ela com a mesma intensidade dos velhos tempos, sua presença ainda é indispensável para trazer à alma um pouco de alívio e paz.