quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Geada de 1975

Seu Júlio caminhou até o quintal e pousou os dois pés sobre a poça de água completamente congelada. Era meio dia, o sol seguia a pino. O pasto todo coberto com uma espessa camada de gelo que teimava em não derreter, assim como as gotas de orvalho petrificadas que repousavam sobre árvores e plantas.

Os 40 litros de esterco em cada pé não foram suficientes para fazer com que o cafezal resistisse à temperatura inóspita. Mesmo antes de amanhecer completamente, as folhas amareladas já anunciavam a perda. Entre os galhos, pássaros jaziam em seus ninhos.

Às margens do Rio Pardo, o tapetão branco não se desfazia. Era possível caminhar pelo pasto sem umedecer a botina. Só mais tarde o branco seria substituído pelo amarelão do capim agonizante.

Seu Júlio ajeita o cigarro de palha e o acende pela terceira vez em pouco mais de cinco minutos. Depois o acomoda no canto da boca antes de reiniciar. “A geada traz coisa boa também porque mata as pragas. Esse é um ponto que ninguém repara”.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Quem tem violão, tem casa


Rodoviária Barra Funda, meados de janeiro.

O questionamento foi espontâneo e imediato.
– Cadê o violão, seu caipora? Não acredito que você não trouxe, resmungou prontamente o Felippe antes de qualquer cumprimento oficial.

A pergunta, inevitável, já estava estampada em sua cara antes mesmo de se aproximar, enquanto ainda costurava transeuntes que perambulam pela Barra Funda ao mesmo tempo em que tentava identificar por cima do povo o volume que mais se assemelhava ao instrumento entre minhas malas.
– Vamos levar o seu, retruquei, na tentativa de suavizar a questão.
– Acontece que o meu está em Piraju, lembra?
– Azar então, sentenciei.

A culpa não era minha. Um ruído na comunicação não permitiu que eu compreendesse durante a conversa telefônica na noite anterior que estávamos sem violão em São Paulo. Pior, sem violão a caminho de São Thomé das Letras. No metrô, ouvi ainda algumas vezes a acusação que teria deliberadamente “esquecido” o companheiro com cordas mas o assunto pareceu perder força e parecia definitivamente encerrado pela tarde.

O violão voltou à ordem do dia quando desembarcamos por volta das 4 horas da manhã em Três Corações. Depois de uma viagem infernal num ônibus que desconhecia acento reclinável, seriamos obrigados a moscar até as 6 horas numa rodoviária fria. Um violãozinho ali cairia bem pra passar as horas.

Mas foi só em São Thomé que a sangria se tornou desatada. Durante a manhã, ainda não havia ninguém com o instrumento na rua mas a coisa mudou de figura durante a tarde e ele estava presente em praticamente todas as rodinhas espalhadas pela cidade.

Na primeira noite, depois de ser responsabilizado diversas vezes por não ter levado o violão, seguimos para a pirâmide de mãos abanando. Aguados de vontade de tocar e cantar no alto da montanha, tivemos que nos contentar em participar de uma roda de malucos que só tocavam músicas idiotas do igualmente idiota Ventania. Triste.

A culpa era minha. Nessa altura eu já havia somatizado a responsabilidade por ter esquecido o violão. Era hora de agir. Tentei emprestar um do dono da pensão mas ele desconversou. Disse que violão é algo pessoal e não se empresta. (Chuveiro é algo igualmente pessoal e não se empresta. Por isso, estou eximido de qualquer culpa por ter quebrado o da pensão ao tentar fazê-lo esquentar).

Pelas ruas, nenhum drogado ou pseudo-hippie sabia onde eu encontraria um instrumento para alugar. Resignado, eu já me preparava para passar à posteridade como o causador da maior iniquidade sobre a Terra desde a crucificação de Cristo quando o cara do bar de pedra disse que me arrumaria um violão. O preço da redenção: R$ 15 pelos três dias em que ficaríamos na cidade.

Não “paguei caro” por ter esquecido o violão, ao contrário do que ajuizava meu companheiro de viagem.