sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Uns pés

O carro se aproximou e obrigou os adolescentes a interromper a “pelada” na pequena viela. O veículo preto – provavelmente recém saído da concessionária e que tinha vidros escurecidos e rodas aro 15 – diminuiu ainda mais a velocidade e, ao contrário do que esperavam, não seguiu adiante. Estacionou ali mesmo, empatando o campo improvisado dos atletas.

Não por acaso, os olhares se voltaram para o automóvel mais do que depressa. Nem tanto pra apreciar o novo modelo que até então eles só haviam visto na televisão (e os meninos adoravam carros), mas principalmente para identificar o autor daquele petulante ato que embargara o tradicional futebol da tarde. O mistério foi desfeito quando uma mulher saiu do carro. Era magra, de estatura média e dona de uma vasta cabeleira negra e lisa que lhe garantia um aspecto imponente. Seus olhos verdes se destacavam por conta do contraste com a pele levemente bronzeada.

Rapidamente os semblantes se transformaram e a simples observação curiosa passara à observação qualificada. A moça usava um vestido roxo cujo comprimento findava um pouco acima do joelho. Era exuberante. Pablo reparou nas mãos da desconhecida que ficaram expostas quando a porta do carro foi fechada. Uma, espalmada, empurrava pelo vidro enquanto a outra, com o punho virado pra cima, forçava a porta pela cavidade da trava.

Os meninos ainda estavam estáticos quando a moça voltou-se para perguntar onde ficava a casa de número 112. Ninguém respondeu. Caberia ao Pablo responder.
- É a minha casa, essa aí com o portão marrom, disse apontando diagonalmente para o outro lado da estreita rua. A mulher sorriu brevemente e agradeceu.

Atravessou a rua, bateu palmas e foi recebida na residência. Os demais garotos arderam de inveja.
- É alguma prima sua, Pablo?, perguntou um deles.
- Não faço ideia, dizia enquanto buscava na memória alguma relação com a desconhecida. Talvez uma prima distante, tia não poderia ser porque aparentava ter apenas uns 25 anos.

A investigação prosseguia. Pablo percebeu que aquele era um dia de glória. Havia se tornado o centro das atenções e desfrutava do momento como um rei cercado de súditos. Chegou a insinuar que a moça teria que dormir em seu quarto caso fosse passar a noite por ali.

Ouviu-se um grito saído da casa com o portão marrom. Era a mãe de Pablo que chamava por ele. O garoto lançou um olhar morteiro sobre os companheiros e atravessou a rua orgulhoso. Ao passar o portão, tomou consciência do seu penoso estado físico, resultado de horas de futebol debaixo de sol. Pensou em escovar os dentes e pentear os cabelos mas não teve tempo: sua mãe o chamara novamente.

Entrou pelo corredor e encontrou ambas confortavelmente acomodadas no sofá da sala. Ainda meio tímido, levou a mão para cumprimentar a bela desconhecida. Desta vez pôde examinar a dela com mais detalhes. Observara suas unhas impecáveis, concluídas com esmalte claro e adornadas com francesinha. Tratava-se de uma ex-vizinha, que se mudara da rua ainda criança. Voltava agora depois de anos para rever os antigos moradores dali. Quando deixara o local, Pablo ainda era de colo.

O garoto permaneceu num sofá localizado na frente das duas. Fingira ter interesse nas reminiscências mas objetivava apenas admirar-lhe o corpo. Observava com precisão os gestos contidos e suaves, as pernas cruzadas que a deixava com as coxas ainda mais grossas, as mãos que giravam no ar durante uma explanação, a fala agradável, o jogar de cabelos, a composição dos lábios. Apreciava ainda o suave perfume que exalava da fêmea. Ficaria por horas naquela situação se pudesse, sem dar um pio sequer.

Pela enésima vez, vagou disfarçadamente para cima e para baixo pela silhueta da agora nem tão desconhecida e deitou o olhar atento sobre seus pés, imobilizados a 45 graus graças à inclinação da sandália. A visão o desconcertou profundamente. Jamais havia visto pés tão lindos. O peito, absurdamente à mostra, era cortado apenas pelos laços amarrados fortemente acima do tornozelo, enfatizando ainda mais as carnes da panturrilha. As unhas (novamente elas) eram tão perfeitas como aquelas pertencentes aos membros superiores. Em seus dedos simétricos, a possibilidade de serem umedecidos por qualquer boca humana.

Pablo sentiu um calafrio e os hormônios ficaram ainda mais à flor da pele. Mãos frias, testa despejando suor. Teve que cruzar as pernas e, disfarçadamente, ajeitou o calção pela terceira vez. Reparava agora nos descoloridos (e imperceptíveis) pêlos nas pernas torneadas da ex-vizinha. O calor daquele cômodo parecia cada vez mais insuportável.

A conversa encaminhou para o fim. A moça levantou-se, despediu-se dos anfitriões e partiu prometendo voltar num futuro próximo. Pablo permaneceu no sofá. Estava imóvel, sozinho na sala com o olhar fixado em um ponto qualquer da parede branca. Há um segundo pensara em se trancar no quarto mas refutou enfaticamente a possibilidade, como se nutrisse por ela uma espécie de respeito secreto. Não gostaria de quebrar o pacto firmado tão e meramente consigo mesmo.

Não dormiu naquela noite. Não dormiria nas seguintes também.

sábado, 24 de outubro de 2009

Praça

Por volta da meia noite o grupo começa a se reunir espontaneamente em torno de um dos bancos. A aglomeração só tem início depois do expediente: um já levou a namorada embora e o outro já acompanhou a série preferida na televisão. Este último perdeu o sono e resolveu sair para dar uma volta.

A fina neblina indica que a madrugada será um pouco inóspita. Para combater a friagem, serão consumidas algumas garrafas de vinho barato obtidas por meio de uma vaquinha que ainda corre a roda. Dois ou três saem então em busca da encomenda enquanto os demais cuidam de tocar violão ou jogar conversa fora.

Alguém, sabe lá por qual motivo, puxa o assunto matemática, talvez influenciado pela chegada do Robson que acabara de saltar do ônibus dos estudantes. Rapidamente o assunto ganha a adesão de parte do grupo e culminamos na cena em que o estudante agachado – pedra como giz e o chão da praça como lousa – expõe aos interessados a resolução de um problema envolvendo trigonometria.

Paralelamente, o núcleo do violão improvisa um blues. O fato de ser instrumental chateia um pouco quem espera a execução de alguma coisa mais cantarolável. Já pediram o Menino da Porteira três vezes, finalmente tocada depois que o Willian executa um trecho intrincado de Eruption, do Van Halen. Eu tentei emplacar Casa no Campo, mas a galera não conhecia.

O Jonas Caixa D’água aparece com uma coletânea de textos do Ferreira Gullar. Deixo temporariamente o núcleo da música para fuçar no livro.
- Já leu?, pergunto.
- Não, peguei na escola hoje.
Mas vai ler. Caminho até encontrar Poema Sujo e gasto algum tempo ali.

O vinho finalmente chega e é distribuído em copos de plástico mesmo para os espertinhos que fugiram na hora da vaquinha. Se a bebida é suficiente para afetar consciências, tem início o momento Boate Azul que não raramente é o mais longo e aglutina transeuntes, bêbados e vagabundos que passam por ali.

Mas também há espaço para canções próprias. A Blues dos Fofoqueiros, que critica a hipocrisia da sociedade oleense, foi composta por volta de 2005 e ganhou a simpatia dos frequentadores da praça. A mais recente se chama É Ozzy, homenagem ao Alex. Surgiu quando tocávamos Iron Man, do Black Sabbath, num determinado banco enquanto o citado azarava uma garota paulistana num acento ao lado. Ao ouvir os acordes nervosos da introdução, Alex interrompeu o xaveco e gritou com voz gutural:
- É Ozzy!?

Além de mandar por água abaixo suas expectativas de impressionar a guria com seu vasto conhecimento musical, a passagem gerou os seguintes versos iniciais:

Eu ouvi o Black Sabbath e pensei que era o Ozzy
Eu ouvi o Sepultura, achei que era a Ivete
Eu ouvi o Caetano, pensei em Los Hermanos
Eu ouvi o Iron Maiden, pensei na Madonna
Eu ouvi os Rolling Stones e pensei que era o Bruno e Marrone

Embora ambas sejam composições coletivas, é sempre o Willian que traz a ideia inicial.

A madrugada adentra. A viatura passa lentamente pela rua na tentativa de identificar os indivíduos. Feito isto, segue sua rota normalmente. Sabe que o único problema a ser registrado ali é o eventual incômodo à vizinhança causado pela cantoria alta. Mas só quando algum morador aciona a PM, e isso ocorre com certa frequência, somos amistosamente lembrados a baixar o tom. Nem é preciso dispersar.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Domingo

A rede está esticada entre a mangueira e o jambeiro onde faz uma sombra refrescante. Dali vejo quase todo o pomar e ouço a algazarra dos pássaros nas árvores maiores. Galinhas ciscam debaixo das frutíferas. A poucos metros, uma cerca separa as novilhas que pastam despreocupadas. Outra galinha procura comida no cocho do gado.

Da cidade vem o ruído alto dos hits que provavelmente irão bombar no próximo verão. Enquanto as meninas desfilam com shorts curtíssimos, os meninos pagam de gatão encostados no carro com o porta-malas arreganhado.

O tempo vivido na cidade grande (?) fez com que eu olhasse o campo com mais apuro. Ali ainda reside muito do simples da vida. Boto reparo agora nos pés de caju que plantei há uns cinco anos durante as férias da faculdade. São dois. Um se mostra frondoso e já deve dar frutos. O outro não teve o mesmo desenvolvimento: cresceu à sombra da mangueira e por isso ficou franzino e raquítico.

Ao lado da rede, um toco de madeira ao alcance da mão serve de apoio para acomodar um livro ou outro objeto. Penso logo num copo de vinho vagabundo gelado. Só penso, afinal tenho bebido muito pouco ultimamente. O último porre – ocorrido numa pescaria noturna há quase um mês – foi extremamente desagradável.

Aproveito a saída do meu irmão para afanar o notebook dele e escrever esse texto deitado entre árvores. O silêncio me faz bem. Penso na vida. A proximidade dos 30 e a efemeridade da existência têm me levado a diversas reflexões e interiorizações. Serei um mero espectador da vida? Tenho empregado energia em coisas vãs? Trocar o certo pelo duvidoso? Arriscar ou permanecer no marasmo? Qual é a prioridade? E o futuro? Será que chegarei aos 60 (se é que vou chegar até lá) com a sensação que a vida passou e eu nem vivi?

Ou tudo isso não passa de uma crise existencial pós-adolescente? Essa porra desse computador está esquentando a região da minha genitália. Melhor tirá-lo do colo. Sei lá, a radiação pode dar um câncer ou coisa assim.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Manchetes que gostaria de ter lido

Após deixar o caixão, Michael Jackson faz o Moonwalk sobre a própria lápide

Lula promove a maior reforma agrária do planeta

Cristovam Buarque aparece em 1º lugar nas pesquisas

Sarney comete harakiri após discurso de renúncia

STF derruba obrigatoriedade do diploma de advogado

Gilmar Mendes tem o registro profissional cassado

Demi Moore diz que sai com anônimos frequentemente

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Histórias (Verdadeiras) de Pescador

Antes de sair, Dito dá uma última conferida na tralha. Checa se o compartimento de anzóis e a caixa de minhocas foram devidamente depositados no fundo do samburá. Os itens mais leves, como os carretéis variados e o covo, são colocados por último.

Apenas um elemento diferencia minha tralha da do Dito: a marmita. Equipada com suã de porco, pimenta e tendo como base virado de feijão e arroz, ela é uma companheira inseparável em toda pescaria. O Dito é mais prático: carrega consigo fatias de queijo gorgonzola mal embrulhadas em papel toalha.

Os apetrechos, espalhados pela calçada, são colocados rapidamente dentro do Fusca. Antigamente as varas de bambu eram transportadas no quebra vento. Hoje, porém, tal procedimento se tornou obsoleto graças à invenção da vara telescópica. Isolado num saco de estopa, um litro tenta passar despercebido diante do olhar de curiosos que rodeiam o local.

Pescaria noturna é uma corrida contra o tempo. O pescador deve estar acomodado na beira do rio cerca de duas horas antes do pôr do sol. O objetivo é analisar a área no intuito de identificar possíveis empecilhos naturais (espinhos, abelhas e animais peçonhentos), fixar a angulação da vara em relação ao poço e distribuir o material de pesca que vai necessitar durante a escuridão.

Mas desta vez, porém, chegamos ao Salto um pouco tarde por culpa de um erro na rota. Local de difícil acesso, descida íngreme. Entre o barranco e o rio apenas um banco de pedra de aproximadamente um metro. Veredicto: teríamos que pescar em pé, espremidos entre o paredão e a corredeira.

Pescaria noturna é ainda uma experiência que ativa os sentidos, menos a visão. O tato, por exemplo, é necessário para encontrar a lata de isca no escuro. Mesmo portando farolete, é prudente utilizá-lo apenas em caso de necessidade: diz a lenda que o facho de luz espanta o peixe. Quando um anzol é perdido em algum enrosco, o encordoamento geralmente é refeito utilizando apenas o sentido.

A audição desempenha outro papel relevante. Com ela é possível constatar se realmente o anzol foi lançado na água mesmo no breu total, evitando que o pescador fique por horas a fio sem perceber que sua isca descansa sossegadamente em algum galho próximo da superfície. Outra propriedade é detectar a aproximação de animais indesejados entre as folhas secas. Função não menos importante tem o paladar, incumbido de degustar bebida alcoólica e comida.

O problema é que no Salto o sentido da audição é anulado por causa do barulho provocado pela queda d’água. Restando apenas o tato, é preciso checar se há movimento na linha a cada lançamento.

Entre um gole e outro e alguns beliscões, a escuridão cai e engole tudo ao redor. A perseverança faz com que fiquemos firmes ali mesmo diante dos sinais desfavoráveis. Hora boa pra pescar é na boca da noite, depois disso só na madrugada.

Com a pescaria perdida, os apetrechos são colocados novamente dentro do samburá, mas não com a mesma organização inicial. O farolete é acionado para demarcar o longo caminho de volta morro acima.

O Dito me oferece mais um pedaço de queijo, como quem quer terminar de vez com aquilo.
- Vai jogar o resto deles na água? pergunto.
- Não, esses peixes aí não merecem, conclui enquanto olha para o rio e mastiga o último pedaço com ar de provocação.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Uma Conversa - Por Felippe Aníbal

Ele entrava na padaria com uma dignidade inabalável, embora alguns dos clientes torcesse o nariz diante de sua presença, enquanto outros, ainda, simplesmente ignoravam-no. Um tipo magricela e de óculos, que parecia ser o gerente da casa, se precipitou e fez menção de expulsar o homem que àquele instante se recostava ao balcão.

- Não vou sair! E meu direito de ir e vir? - emendou, encurtando conversa.

Trazia um enorme saco plástico preto, repleto de papelão. Metido em uma calça rota e em uma blusa de moletom preta e desbotada, locomovia-se com dificuldade, mancando da perna esquerda. De quando em quando, coçava a longa e grossa barba branca, que lhe dava uma aparência quase que medieval.

- Pode servir um café com leite e um pão com manteiga ao senhor, que eu pago. - disse eu ao magricela de óculos, que me fulminava com o olhar.

Agradecido (mas sem parecer servil), o homem se dirigiu a mim, mostrando as mãos calejadas e sujas, como provas de que era ele um trabalhador. Reclamou com uma das funcionárias pela demora em servir-lhe o desjejum, ao que esta retribuiu com cara de indiferença.

- Sente-se senhor. - sugeri.

- Na mesa com o senhor? - perguntou ele, mas já se acomodando em uma cadeira diante da minha, antes que eu respondesse afirmativamente.

De cara, mostrou-me seus coturnos, relativamente novos, encontrados soterrados em uma lata de lixo. Morava na rua. Naquela mesma manhã, quase fora despertado com um balde de água fria, por dormir sob uma marquise, tentando se proteger do frio com os papelões que catava para revender à reciclagem. Contou-me que chegara a ficar quinze dias sem comer (ao que eu prontamente protestei e acusei ser uma inverdade), que perambulava de uma cidade a outra sem motivo aparente. Ficar em um mesmo lugar por muito tempo, fazia sentir-se aprisionado. Queria que sua alma gozasse do direito de ir e vir.
Enfim, uma das empregadas serviu-lhe, forçando-se para parecer simpática. Ele deu de ombros. Comeu com a voracidade de quem tem fome, enquanto farelos do pão incrustavam-se entre os fios espessos de sua barba.
De relance, percebi que todos olhavam para a mesa em que estávamos. O homem também percebeu e fez um breve discurso contra o preconceito, falou sobre a efemeridade da vida e sobre a pequenez do pensamento daquelas pessoas. Entretanto, calou-se no meio de um pensamento. Do saco, tirou um livro grosso, de capa dura. Decamerão, de Bocaccio.

- Falta-lhes leitura! - sentenciou.

Não me lembro do restante da conversa. Creio que nem seja necessário.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Geada de 1975

Seu Júlio caminhou até o quintal e pousou os dois pés sobre a poça de água completamente congelada. Era meio dia, o sol seguia a pino. O pasto todo coberto com uma espessa camada de gelo que teimava em não derreter, assim como as gotas de orvalho petrificadas que repousavam sobre árvores e plantas.

Os 40 litros de esterco em cada pé não foram suficientes para fazer com que o cafezal resistisse à temperatura inóspita. Mesmo antes de amanhecer completamente, as folhas amareladas já anunciavam a perda. Entre os galhos, pássaros jaziam em seus ninhos.

Às margens do Rio Pardo, o tapetão branco não se desfazia. Era possível caminhar pelo pasto sem umedecer a botina. Só mais tarde o branco seria substituído pelo amarelão do capim agonizante.

Seu Júlio ajeita o cigarro de palha e o acende pela terceira vez em pouco mais de cinco minutos. Depois o acomoda no canto da boca antes de reiniciar. “A geada traz coisa boa também porque mata as pragas. Esse é um ponto que ninguém repara”.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Quem tem violão, tem casa


Rodoviária Barra Funda, meados de janeiro.

O questionamento foi espontâneo e imediato.
– Cadê o violão, seu caipora? Não acredito que você não trouxe, resmungou prontamente o Felippe antes de qualquer cumprimento oficial.

A pergunta, inevitável, já estava estampada em sua cara antes mesmo de se aproximar, enquanto ainda costurava transeuntes que perambulam pela Barra Funda ao mesmo tempo em que tentava identificar por cima do povo o volume que mais se assemelhava ao instrumento entre minhas malas.
– Vamos levar o seu, retruquei, na tentativa de suavizar a questão.
– Acontece que o meu está em Piraju, lembra?
– Azar então, sentenciei.

A culpa não era minha. Um ruído na comunicação não permitiu que eu compreendesse durante a conversa telefônica na noite anterior que estávamos sem violão em São Paulo. Pior, sem violão a caminho de São Thomé das Letras. No metrô, ouvi ainda algumas vezes a acusação que teria deliberadamente “esquecido” o companheiro com cordas mas o assunto pareceu perder força e parecia definitivamente encerrado pela tarde.

O violão voltou à ordem do dia quando desembarcamos por volta das 4 horas da manhã em Três Corações. Depois de uma viagem infernal num ônibus que desconhecia acento reclinável, seriamos obrigados a moscar até as 6 horas numa rodoviária fria. Um violãozinho ali cairia bem pra passar as horas.

Mas foi só em São Thomé que a sangria se tornou desatada. Durante a manhã, ainda não havia ninguém com o instrumento na rua mas a coisa mudou de figura durante a tarde e ele estava presente em praticamente todas as rodinhas espalhadas pela cidade.

Na primeira noite, depois de ser responsabilizado diversas vezes por não ter levado o violão, seguimos para a pirâmide de mãos abanando. Aguados de vontade de tocar e cantar no alto da montanha, tivemos que nos contentar em participar de uma roda de malucos que só tocavam músicas idiotas do igualmente idiota Ventania. Triste.

A culpa era minha. Nessa altura eu já havia somatizado a responsabilidade por ter esquecido o violão. Era hora de agir. Tentei emprestar um do dono da pensão mas ele desconversou. Disse que violão é algo pessoal e não se empresta. (Chuveiro é algo igualmente pessoal e não se empresta. Por isso, estou eximido de qualquer culpa por ter quebrado o da pensão ao tentar fazê-lo esquentar).

Pelas ruas, nenhum drogado ou pseudo-hippie sabia onde eu encontraria um instrumento para alugar. Resignado, eu já me preparava para passar à posteridade como o causador da maior iniquidade sobre a Terra desde a crucificação de Cristo quando o cara do bar de pedra disse que me arrumaria um violão. O preço da redenção: R$ 15 pelos três dias em que ficaríamos na cidade.

Não “paguei caro” por ter esquecido o violão, ao contrário do que ajuizava meu companheiro de viagem.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O dono da bola



Ninguém está mais feliz com a morte de Michael Jackson do que José Sarney. Com ela, as picaretagens do presidente do Senado ficaram em segundo plano no noticiário.

Para a próxima semana, Sarney reza pelo falecimento do papa ou de algum ex-beatle. A do Lula seria um negócio ruim para ele.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Recado de Gilmar: jornalistas, vão tomar no ...

Gilmar: ele estraga tudo que pega na mão

Ao defender o voto contrário à obrigatoriedade do diploma para o exercício da função de jornalista, o relator Gilmar Mendes apontou que o ofício independe de conhecimentos técnicos, por isso o curso superior seria desnecessário.

Acontece que o mais importante na formação do jornalista não é o aprimoramento técnico e sim a formação humanística proporcionado pelo contato com a sociologia, ética, antropologia e outras disciplinas relacionadas. O foco, de início, já está mais que equivocado.

Os patrões agradecem.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Buarque: o cara


Como é de praxe, sintonizei a TV Senado durante o almoço.

O senador Cristovam Buarque discursa ao vivo na tribuna. Disse que o Brasil é um país que “queima” duas coisas que garantiriam sua sobrevivência no futuro: a Amazônia e seus recursos e o cérebro de milhares de crianças entregues à arcaica estrutura da escola brasileira. Suposição: uma pessoa recém acordada de um sono de 30 anos provavelmente não reconheceria um shopping ou um outro estabelecimento qualquer, mas reconheceria uma escola, que nunca muda.

Para demonstrar a lógica do funcionamento de um país atrasado e oligárquico, disse ainda que o Brasil deverá investir milhões na exploração do pré-sal ao invés de também investir na educação, esta sim responsável pela legítima e definitiva revolução.

Dez minutos foram o suficiente: o dia estava ganho. Se Obama conhecesse o senador, não diria que Lula é o cara.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Fragmentos


Embora eu esteja trabalhando nele há mais de uma semana, o capítulo sobre a história do sindicalismo no Brasil ainda não saiu. O tempo urge.

A cantora mais chata do momento atende pelo nome de Susan Boyle. Como uma porcaria daquela pode virar unanimidade? Espero que ela não vença o concurso e seja convidada a participar do Programa do Gugu antes de despontar definitivamente para o anonimato.

Mais trash ainda é ver o Roberto Carlos sendo homenageado por Claudia Leite (argh) e Ivete Sangalo. O evento deu a dimensão do “non sense” que povoa o imaginário de certos produtores....

Hoje tem show dos Paralamas em Avaré, cidade na qual já vi uma apresentação do grupo nos idos de 1996 durante a turnê do disco Nove Luas. Expectativa.

A viola me acompanha. Hoje eu a trouxe para o expediente embora isso não seja muito inteligente. Quando não tem ninguém por perto, dou uma ou outra ponteada bem baixinho e volto a ocultar o instrumento atrás da porta.

Desconsiderem a postagem abaixo. É simplesmente ridícula. Parece redação da 4ª série.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Espelho

A imponência dos oceanos, com seus movimentos infinitos à beira mar

A mansidão dos rios, que cortam os vales como minhocas úmidas a procurar o caminho

A Amazônia e sua exuberante fauna e flora, a mais bela obra de todo o planeta...

A impureza dos oceanos, com seus detritos infinitos à beira mar

A mansidão dos rios, que somem dos vales como minhocas mortas a procurar o jazido

A Amazônia e sua invejável fauna e flora, a mais usurpada obra de todo o planeta ...

segunda-feira, 20 de abril de 2009

A Captura dos Frangos na Sexta-Feira Maior

O burburinho causado pela aglomeração no bar logo de manhã contrastava com o silêncio que reinava na maioria das residências naquele dia. A alegria dos filhos fazia oposição à tristeza dos pais. No entanto, não havia naquele grupo uma só alma com copo na mão apesar do ambiente propício.

Os sujeitos sentados na sarjeta naquela manhã ensolarada – a maioria já sem camiseta por causa do intenso calor – aguardavam a chegada daquilo que os levaria pelos cafundós durante todo o dia: a carreta, cujo trator seria conduzido por um do grupo incumbido de executar a tarefa desde a noite anterior. Além do tratorista, há outro ofício: o do tocador, também indispensável no ritual.

Enquanto deixa a cidade, a carreta recolhe aqueles que saíram de casa para comprar pão ou ir ao açougue, mas que só voltarão no início da noite diante do convite irrecusável que ecoa de cima do aparelho. A euforia visível dos que já estão na carreta faz com que abandonem temporariamente família, namorada e compromissos tradicionais do dia. Não há tempo para avisar ninguém e nem trocar de roupa. A caravana é lenta, mas não pára. Não há segunda chance. “Vai ter que ir de chinelo mesmo”. “Não, não vai dar pra passar no bar comprar cigarros”. A pavimentação dá sinais de escassez em frente ao portão do cemitério, finda ali a pouca urbanização existente e um tapete vermelho se abre no horizonte. Dali pra frente, o dia seria longo entre tortuosas estradas de terra, sol na fonte e quilos de poeira. E muitas e muitas porteiras para transpor. Mas não sem alegria, uma alegria sem motivo aparente, mas ainda sim alegria.

De longe, o habitante da casa de tábua já sabe o motivo da visita e não raramente traz a prenda nas mãos antes mesmo da caravana aportar. Os que não se lembraram apontam com o indicador a ave a ser capturada, ato que justifica a existência do grupo e deflagra a cena a seguir: chinelos arrebentados, roupas rasgadas, pernas e braços sujos, aves em fuga, jovens em polvorosa e risos, muitos risos.

Depois da empreitada bem sucedida, cabe ao violeiro pontear uma moda para agradecer a doação. De volta à carreta e com o frango já aprisionado, todos cantam. O dono da propriedade permanece no chão em silêncio, procura encontrar ordem na desorganizada canção executada sem critério a quinze vozes, sorriso nos lábios, gosta dos meninos até, conhece o pai de todos ali, acha barulho demais para um dia como aquele, dia em que todos deveriam permanecer quietos, mas não vê maldade naquilo. Na despedida, promete que vai ao arroz com frango, servido após a meia noite e nem um segundo antes disso. Mas não vai. Também não irá ninguém das outras propriedades visitadas em que o ritual se repete.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Fogo!


A considerar pelo mapa, a rota parecia tranquila. Bastava atravessar a pedreira e pronto: estaríamos na Gruta do Carimbado. A ideia sensacional evitaria que caminhássemos cinco quilômetros de asfalto e mais um quilômetro e meio de estrada de terra. Afinal, nem eu nem o Felippe gostaria de vivenciar de novo aquilo que passamos no primeiro dia em São Thomé das Letras, quando descemos a pé até o Vale das Borboletas e quase não voltamos.

A proposta era tão boa que ganhou adesão do gordinho asmático, de seu amigo e posteriormente da namorada ruiva do amigo. A mesma ruiva que o Felippe classificara em alto e bom som de “ruivinha bonitinha” momentos antes enquanto ela se aproximava do coreto em que estávamos. (Pensando se tratar apenas de uma moça qualquer a passear pela praça, o Felippe teceu comentários a respeito dos dotes físicos da adolescente até então desconhecida, que se aproximou da roda e se abraçou ao namorado, exatamente o amigo do gordinho, um dos interlocutores da roda).

Iríamos os cinco para a gruta pela rota alternativa. Partiríamos às três da tarde. Fechamos os detalhes, local de encontro para a saída e o que levar na empreitada. Tudo certo, nada combinado. Os três não apareceram. Para a sorte deles e muito provavelmente para a nossa também.

Partimos eu e o Felippe, atravessamos a rodoviária e adentramos a enorme pedreira que impressiona pelo intenso movimento de trabalhadores e caminhões. As pedras extraídas do solo são brancas e, depois de amontoadas em grandes porções, simulam altas montanhas cobertas de neve. Extração que é feita com dinamite, diga-se de passagem, fato que não desconhecíamos. O que desconhecíamos é que as explosões ocorriam entre quinze horas e dezessete horas. “Cuidado com o fogo”, havia dito um peão logo na entrada. Nas diversas placas avistadas durante a tentativa de encontrar o caminho o mesmo lembrete: “Ao ouvir a sirene, proteja-se”.

Não ouvimos a sirene, apenas uma explosão deflagrada provavelmente a uns cem metros dali. O acontecido foi o bastante para que buscássemos uma rota alternativa na rota alternativa. Chega de procurar trilhas entre montanhas brancas e experimentar a sensação de estar andando em círculos. O negócio era sumir dali o mais rápido possível e chegar até a terra firme, mesmo que fosse necessário escorregar pelas montanhas de pedras soltas e correr o risco de ser soterrado por uma avalanche autoprovocada. “É um milagre estarmos vivos”, disse o Felippe ao atingirmos o solo depois de infinitas ladeiras a 75 graus, inúmeras ameaças de pequenas avalanches e três explosões longínquas.

“Ainda bem que o gordinho asmático não veio”, pensamos. Ele teria sido mortalmente ferido numa queda e nem nos daríamos ao trabalho de socorrê-lo. Já se fosse a ruivinha ...

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Aquilo que mantém a união deles


Avaré, 28 de março.

Com uma hora de atraso, os Titãs entraram no palco com a prejudicada “Diversão”. E então aconteceu aquilo que já presenciei diversas vezes em outras apresentações: os caras lá no palco tocando e a gente na plateia pulando sem saber exatamente qual música rolava. Tudo graças à péssima acústica do local.

A coisa só melhorou lá pela terceira música. Ao meu lado, senhores e senhoras de meia idade já haviam abandonado as cadeiras da área vip cujo valor da mesa beirava os R$ 300 para se entregar à dança. Pelo menos neste aspecto o Rock é bastante democrático: qualquer idiota se estrebucha da maneira que quiser e ninguém vai reparar se você errou o passo ou não.

A disposição das mesas – localizadas em frente ao palco e protegidas por cercas – deixava latente até para os mais desatentos a segregação social entre vips e não vips. Cheguei a esperar um discurso inflamado do Sérgio Britto condenando o apartheid mas não rolou. Se fosse na época do “Cabeça Dinossauro” ...

A atuação de Branco Mello na nova fase dos Titãs é algo que merece destaque. Em diversos clássicos ele assumiu o baixo e a banda dispensou a colaboração dos dois músicos que a acompanha em turnê. O comando ficou só com os cinco titãs remanescentes. Uma espécie de volta às raízes. É claro que “Bichos Escrotos” não teve aquele slap hipnótico original. No entanto, Branco não comprometeu e fez a sua parte direitinho, mesmo que não tivesse a pretensão de demonstrar destreza no instrumento.

Paulo Miklos também provou que é capaz de executar outro instrumento além da voz. O vocalista ficou grudado em sua Telecaster creme durante quase todo o show. Tanto que coube a ele dar vida à clássica introdução da já citada “Bichos Escrotos”, até então reproduzida ao vivo por músicos contratados desde a morte do guitarrista Marcelo Fromer em 2001.

“Cabeça Dinossauro” e “Polícia” seguiram a mesma linha - somente com os cincos titânicos - com aquela clássica encenação de guitarras e baixo lado a lado na beira do palco. O momento não deixou de ser emocionante e trouxe à tona a harmonia e o entrosamento existente entre eles. Talvez seja essa união que os mantenha ativos mesmo após mais de 25 anos de carreira, dois desfalques e a morte trágica de um membro do grupo, além de um horrendo acústico da MTV.

Quem imaginava encontrar uma banda em franca decadência que está na estrada apenas por hábito irá se frustrar ao saber os Titãs preparam um novo disco sem a ajuda de músicos extras, exatamente como foi apresentado em boa parte do show. Bom presságio.

É a prova que o feeling do Rock`Roll é eterno, independentemente de cabelos brancos.

Te encontro no Dois


A ideia foi do Felippe: tomar um caldinho de feijão naquele bar de pedra próximo à praça. Pra rebater a friagem. No início resisti, não estava a fim de um ou dois feijões boiando sobre um pote de água quente com coloração de enxurrada.

O ambiente era aconchegante. Mesas, cadeiras e tudo mais de pedra, pra variar. Mas muito funcional e elegante. Solicitado o pedido, iniciava-se aquele tipo de conversa inútil que se dá no intervalo, às vezes longínquo, entre a solicitação e a chegada do prato.

Na televisão rolava um show da recente formação dos Doors (Se estivesse morto, Jim Morrison estaria se contorcendo na cova naquela hora). Na mesa ao lado, um sujeito com ar de rabugento reclamava da demora de seu lanche a meio tom e resmungava sobre a vida para seus próprios botões.

Por fim aquele caldeirão de bruxa em miniatura estava diante de nós. Como em quase tudo na vida, a prática se mostrou distinta da teoria. De caldinho não havia nada: havia sim um consistente e delicioso caldo cujo fundo estava repleto de pedaços de bacon e na superfície flutuava salsinha. Para o acompanhamento torradas de ontem, mas tá valendo. “Bem servido”, diria o Felippe.

Em algum momento, uma constatação simultânea correu o bar e alguns notaram – inclusive nós e o senhor rabujento – que os Doors repetiam a introdução de Break On Through pela enésima vez. O estado mental alterado da maioria dos presentes não permitiu que a percepção fosse unânime. A convergência com nosso vizinho foi espontânea desaguando em risos nos dois lados. Culpa do dvd dos Doors que estava enroscado no menu já havia algum tempo.

Cumprido o ato digestivo, partimos para a rua acompanhados pela frase “Encontro vocês no Dois” proferida pelo nosso colega cujo lanche ainda não havia chegado. “Bêbado maluco” ou “maldito maconheiro” teríamos pensado caso não fossemos pessoas de bem.

Na noite seguinte me incumbi da tarefa de forçar a barra para que restituíssemos o itinerário do caldinho, mesmo diante da acusação de plágio levantada pelo Felippe. Qual foi nossa surpresa ao constatar que sujeito estava lá de novo, assim como nós, na mesma mesa do dia anterior a resmungar demonstrando a pouca ou nenhuma sobriedade que lhe restava. “Encontro vocês no Dois”, disse ele novamente na despedida. O meu estado mental alterado não permitiu que eu constatasse se o dvd que rolava na ocasião enroscara ou não.