quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O Duelo*


*Crônica publicada na edição 1059 do Jornal Observador

Ainda criança, Crispim deu os primeiros sinais de que gostava de viola. Sua vida era andar pelo vilarejo tocando um pedaço de pau, que não largava nem para comer.

Isso quando comia. Porque Crispim era órfão de pai e mãe e vivia apenas daquilo que lhe era dado pelas senhoras daquela comunidade rural. Os maridos não gostavam: achavam que dar esmola ao pobre coitado faria dele um vagabundo. E, à medida que o menino ia crescendo, a hostilidade dos patriarcas crescia junto.

Chegou à adolescência com um instrumento de verdade, doação de um ferreiro aposentado. Era uma violinha bem ordinária que não segurava a afinação. Mesmo assim, o jovem se dedicava integralmente ao instrumento e chegava a passar dias isolado na mata, num rancho que erguera sozinho à beira do córrego.

Quando a Folia de Reis passava coletando alimentos para a festa do Divino, Crispim acompanhava os tocadores. Nas noites de calor, ele parava em um ponto da calçada onde era possível ouvir rádio. Quando o aparelho de uma residência era desligado, ele vagava pela cidadezinha à procura de outra casa que estivesse com o utensílio em uso. Decorava as melodias que ouvia para reproduzi-las no dia seguinte. Passou a entreter os frequentadores dos bares e a viver das gorjetas dadas por eles. Isso lhe garantiu ainda mais a oposição dos cidadãos de bem.

No final da temporada de chuvas, Crispim sumiu do mapa. No início ninguém deu muita atenção. Mas depois que o violeiro não aparecera nem para acompanhar a Folia de Reis, a população ficou alarmada com o desaparecimento. Uns diziam que ele havia sido morto, outros diziam que ele tinha endoidecido.

Voltou homem feito, com chapéu e sobretudo, bem diferente do jeito maltrapilho do passado. Nada de gorjetas em bares: Crispim agora arrancava dinheiro grosso dos fazendeiros, que admiravam os detalhes prateados de sua nova viola e ensandeciam ao ouvi-lo tocar. As mulheres se apaixonavam por ele. Era o maior violeiro da região.

Fez fortuna em pouco tempo. Agora diziam que ele havia feito pacto com o Demo, que não era possível um sujeito como ele, sem eira nem beira, enriquecer da noite para o dia. Seu jeito misterioso só reforçava essa impressão.

A cisma foi confirmada quando um violeiro desconhecido apareceu na cidade. Igualmente virtuoso e bem afeiçoado, o desconhecido intimou Crispim para um duelo em praça pública.

Sexta-Feira Santa, à meia-noite. Pouca gente teve coragem de assistir à peleja. Mas quem viu conta que Crispim foi derrubando, um a um, os ponteios ameaçadores do adversário, de modo que o estranho chegou ao final do duelo com apenas duas cordas. O golpe de misericórdia veio quando Crispim tocou “Saudade do Matão”, fazendo a pequena plateia chorar. Derrotado, o forasteiro enfiou o que sobrara da viola no saco e deixou o vilarejo.

Há quem garanta que era o próprio Cão, arrependido por ter dado tanto poder ao jovem instrumentista, que viera destruir a reputação de Crispim e tomar-lhe a alma.

Depois desse episódio, não se soube se o Diabo voltou a fazer pacto com violeiros.

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