quinta-feira, 30 de abril de 2009

Espelho

A imponência dos oceanos, com seus movimentos infinitos à beira mar

A mansidão dos rios, que cortam os vales como minhocas úmidas a procurar o caminho

A Amazônia e sua exuberante fauna e flora, a mais bela obra de todo o planeta...

A impureza dos oceanos, com seus detritos infinitos à beira mar

A mansidão dos rios, que somem dos vales como minhocas mortas a procurar o jazido

A Amazônia e sua invejável fauna e flora, a mais usurpada obra de todo o planeta ...

segunda-feira, 20 de abril de 2009

A Captura dos Frangos na Sexta-Feira Maior

O burburinho causado pela aglomeração no bar logo de manhã contrastava com o silêncio que reinava na maioria das residências naquele dia. A alegria dos filhos fazia oposição à tristeza dos pais. No entanto, não havia naquele grupo uma só alma com copo na mão apesar do ambiente propício.

Os sujeitos sentados na sarjeta naquela manhã ensolarada – a maioria já sem camiseta por causa do intenso calor – aguardavam a chegada daquilo que os levaria pelos cafundós durante todo o dia: a carreta, cujo trator seria conduzido por um do grupo incumbido de executar a tarefa desde a noite anterior. Além do tratorista, há outro ofício: o do tocador, também indispensável no ritual.

Enquanto deixa a cidade, a carreta recolhe aqueles que saíram de casa para comprar pão ou ir ao açougue, mas que só voltarão no início da noite diante do convite irrecusável que ecoa de cima do aparelho. A euforia visível dos que já estão na carreta faz com que abandonem temporariamente família, namorada e compromissos tradicionais do dia. Não há tempo para avisar ninguém e nem trocar de roupa. A caravana é lenta, mas não pára. Não há segunda chance. “Vai ter que ir de chinelo mesmo”. “Não, não vai dar pra passar no bar comprar cigarros”. A pavimentação dá sinais de escassez em frente ao portão do cemitério, finda ali a pouca urbanização existente e um tapete vermelho se abre no horizonte. Dali pra frente, o dia seria longo entre tortuosas estradas de terra, sol na fonte e quilos de poeira. E muitas e muitas porteiras para transpor. Mas não sem alegria, uma alegria sem motivo aparente, mas ainda sim alegria.

De longe, o habitante da casa de tábua já sabe o motivo da visita e não raramente traz a prenda nas mãos antes mesmo da caravana aportar. Os que não se lembraram apontam com o indicador a ave a ser capturada, ato que justifica a existência do grupo e deflagra a cena a seguir: chinelos arrebentados, roupas rasgadas, pernas e braços sujos, aves em fuga, jovens em polvorosa e risos, muitos risos.

Depois da empreitada bem sucedida, cabe ao violeiro pontear uma moda para agradecer a doação. De volta à carreta e com o frango já aprisionado, todos cantam. O dono da propriedade permanece no chão em silêncio, procura encontrar ordem na desorganizada canção executada sem critério a quinze vozes, sorriso nos lábios, gosta dos meninos até, conhece o pai de todos ali, acha barulho demais para um dia como aquele, dia em que todos deveriam permanecer quietos, mas não vê maldade naquilo. Na despedida, promete que vai ao arroz com frango, servido após a meia noite e nem um segundo antes disso. Mas não vai. Também não irá ninguém das outras propriedades visitadas em que o ritual se repete.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Fogo!


A considerar pelo mapa, a rota parecia tranquila. Bastava atravessar a pedreira e pronto: estaríamos na Gruta do Carimbado. A ideia sensacional evitaria que caminhássemos cinco quilômetros de asfalto e mais um quilômetro e meio de estrada de terra. Afinal, nem eu nem o Felippe gostaria de vivenciar de novo aquilo que passamos no primeiro dia em São Thomé das Letras, quando descemos a pé até o Vale das Borboletas e quase não voltamos.

A proposta era tão boa que ganhou adesão do gordinho asmático, de seu amigo e posteriormente da namorada ruiva do amigo. A mesma ruiva que o Felippe classificara em alto e bom som de “ruivinha bonitinha” momentos antes enquanto ela se aproximava do coreto em que estávamos. (Pensando se tratar apenas de uma moça qualquer a passear pela praça, o Felippe teceu comentários a respeito dos dotes físicos da adolescente até então desconhecida, que se aproximou da roda e se abraçou ao namorado, exatamente o amigo do gordinho, um dos interlocutores da roda).

Iríamos os cinco para a gruta pela rota alternativa. Partiríamos às três da tarde. Fechamos os detalhes, local de encontro para a saída e o que levar na empreitada. Tudo certo, nada combinado. Os três não apareceram. Para a sorte deles e muito provavelmente para a nossa também.

Partimos eu e o Felippe, atravessamos a rodoviária e adentramos a enorme pedreira que impressiona pelo intenso movimento de trabalhadores e caminhões. As pedras extraídas do solo são brancas e, depois de amontoadas em grandes porções, simulam altas montanhas cobertas de neve. Extração que é feita com dinamite, diga-se de passagem, fato que não desconhecíamos. O que desconhecíamos é que as explosões ocorriam entre quinze horas e dezessete horas. “Cuidado com o fogo”, havia dito um peão logo na entrada. Nas diversas placas avistadas durante a tentativa de encontrar o caminho o mesmo lembrete: “Ao ouvir a sirene, proteja-se”.

Não ouvimos a sirene, apenas uma explosão deflagrada provavelmente a uns cem metros dali. O acontecido foi o bastante para que buscássemos uma rota alternativa na rota alternativa. Chega de procurar trilhas entre montanhas brancas e experimentar a sensação de estar andando em círculos. O negócio era sumir dali o mais rápido possível e chegar até a terra firme, mesmo que fosse necessário escorregar pelas montanhas de pedras soltas e correr o risco de ser soterrado por uma avalanche autoprovocada. “É um milagre estarmos vivos”, disse o Felippe ao atingirmos o solo depois de infinitas ladeiras a 75 graus, inúmeras ameaças de pequenas avalanches e três explosões longínquas.

“Ainda bem que o gordinho asmático não veio”, pensamos. Ele teria sido mortalmente ferido numa queda e nem nos daríamos ao trabalho de socorrê-lo. Já se fosse a ruivinha ...

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Aquilo que mantém a união deles


Avaré, 28 de março.

Com uma hora de atraso, os Titãs entraram no palco com a prejudicada “Diversão”. E então aconteceu aquilo que já presenciei diversas vezes em outras apresentações: os caras lá no palco tocando e a gente na plateia pulando sem saber exatamente qual música rolava. Tudo graças à péssima acústica do local.

A coisa só melhorou lá pela terceira música. Ao meu lado, senhores e senhoras de meia idade já haviam abandonado as cadeiras da área vip cujo valor da mesa beirava os R$ 300 para se entregar à dança. Pelo menos neste aspecto o Rock é bastante democrático: qualquer idiota se estrebucha da maneira que quiser e ninguém vai reparar se você errou o passo ou não.

A disposição das mesas – localizadas em frente ao palco e protegidas por cercas – deixava latente até para os mais desatentos a segregação social entre vips e não vips. Cheguei a esperar um discurso inflamado do Sérgio Britto condenando o apartheid mas não rolou. Se fosse na época do “Cabeça Dinossauro” ...

A atuação de Branco Mello na nova fase dos Titãs é algo que merece destaque. Em diversos clássicos ele assumiu o baixo e a banda dispensou a colaboração dos dois músicos que a acompanha em turnê. O comando ficou só com os cinco titãs remanescentes. Uma espécie de volta às raízes. É claro que “Bichos Escrotos” não teve aquele slap hipnótico original. No entanto, Branco não comprometeu e fez a sua parte direitinho, mesmo que não tivesse a pretensão de demonstrar destreza no instrumento.

Paulo Miklos também provou que é capaz de executar outro instrumento além da voz. O vocalista ficou grudado em sua Telecaster creme durante quase todo o show. Tanto que coube a ele dar vida à clássica introdução da já citada “Bichos Escrotos”, até então reproduzida ao vivo por músicos contratados desde a morte do guitarrista Marcelo Fromer em 2001.

“Cabeça Dinossauro” e “Polícia” seguiram a mesma linha - somente com os cincos titânicos - com aquela clássica encenação de guitarras e baixo lado a lado na beira do palco. O momento não deixou de ser emocionante e trouxe à tona a harmonia e o entrosamento existente entre eles. Talvez seja essa união que os mantenha ativos mesmo após mais de 25 anos de carreira, dois desfalques e a morte trágica de um membro do grupo, além de um horrendo acústico da MTV.

Quem imaginava encontrar uma banda em franca decadência que está na estrada apenas por hábito irá se frustrar ao saber os Titãs preparam um novo disco sem a ajuda de músicos extras, exatamente como foi apresentado em boa parte do show. Bom presságio.

É a prova que o feeling do Rock`Roll é eterno, independentemente de cabelos brancos.

Te encontro no Dois


A ideia foi do Felippe: tomar um caldinho de feijão naquele bar de pedra próximo à praça. Pra rebater a friagem. No início resisti, não estava a fim de um ou dois feijões boiando sobre um pote de água quente com coloração de enxurrada.

O ambiente era aconchegante. Mesas, cadeiras e tudo mais de pedra, pra variar. Mas muito funcional e elegante. Solicitado o pedido, iniciava-se aquele tipo de conversa inútil que se dá no intervalo, às vezes longínquo, entre a solicitação e a chegada do prato.

Na televisão rolava um show da recente formação dos Doors (Se estivesse morto, Jim Morrison estaria se contorcendo na cova naquela hora). Na mesa ao lado, um sujeito com ar de rabugento reclamava da demora de seu lanche a meio tom e resmungava sobre a vida para seus próprios botões.

Por fim aquele caldeirão de bruxa em miniatura estava diante de nós. Como em quase tudo na vida, a prática se mostrou distinta da teoria. De caldinho não havia nada: havia sim um consistente e delicioso caldo cujo fundo estava repleto de pedaços de bacon e na superfície flutuava salsinha. Para o acompanhamento torradas de ontem, mas tá valendo. “Bem servido”, diria o Felippe.

Em algum momento, uma constatação simultânea correu o bar e alguns notaram – inclusive nós e o senhor rabujento – que os Doors repetiam a introdução de Break On Through pela enésima vez. O estado mental alterado da maioria dos presentes não permitiu que a percepção fosse unânime. A convergência com nosso vizinho foi espontânea desaguando em risos nos dois lados. Culpa do dvd dos Doors que estava enroscado no menu já havia algum tempo.

Cumprido o ato digestivo, partimos para a rua acompanhados pela frase “Encontro vocês no Dois” proferida pelo nosso colega cujo lanche ainda não havia chegado. “Bêbado maluco” ou “maldito maconheiro” teríamos pensado caso não fossemos pessoas de bem.

Na noite seguinte me incumbi da tarefa de forçar a barra para que restituíssemos o itinerário do caldinho, mesmo diante da acusação de plágio levantada pelo Felippe. Qual foi nossa surpresa ao constatar que sujeito estava lá de novo, assim como nós, na mesma mesa do dia anterior a resmungar demonstrando a pouca ou nenhuma sobriedade que lhe restava. “Encontro vocês no Dois”, disse ele novamente na despedida. O meu estado mental alterado não permitiu que eu constatasse se o dvd que rolava na ocasião enroscara ou não.