sexta-feira, 19 de março de 2010

Céu


Numa fração de segundo, os três requeridos estavam sentados em cadeiras localizadas numa pequena sala cuja alvura das paredes chegava a incomodar a vista.
- A última coisa que eu ouvi foi um barulho ensurdecedor. Não vi corredor algum e muito menos luz no fim do túnel como me disseram a vida toda, dizia a senhora beata enquanto voltava o corpo para trás na tentativa de buscar a expressão de seu interlocutor.
- Eu cochilava no momento do ocorrido e senti apenas uma pressão forte sobre meu peito. De resto não senti absolutamente nada, enfatizou o político de carreira.

A senhora baixou o tom de voz e colocou o congressista a par do mais recente caso de traição conjugal na paróquia, que por sua vez flexionou o tronco à frente para ouvir a narração do episódio com mais clareza.

Alheio a tudo, o poeta ateu rabiscava qualquer coisa num canto da parede quando foi repreendido por um senhor de barba branca que acabara de entrar na saleta sem qualquer aviso.
- Ei rapaz, tira já esse lápis sujo e terreno daí. Será que você não sabe que pisa num local santo?
- E vocês dois parem de comentar sobre a vida alheia. Vocês já têm problemas demais pra resolver, disse com cara de poucas amizades. Disfarçadamente, a velha girou o dedo no ar horizontalmente para indicar ao homem que continuaria a história num momento mais oportuno.

O senhor de barba branca sacou do bolso um enorme e surrado livro com capa negra e colocou-o sobre uma mesa baixa.
- Vocês vão se levantar sem tumulto e assinar esse livro que formaliza o Auto de Morte de cada um de vocês. Só assim poderei dar prosseguimento ao processo.

Antes de qualquer reação dos demais ocupantes da saleta, a beata deu um pulo da cadeira portando um sorriso largo no rosto.
- Quando entramos no Reino dos Céus?, perguntou já debruçada sobre o livro.
- Minha senhora, estamos apenas iniciando o processo como acabei de explicar. Não há qualquer previsão, apontou o senhor de barba branca.

A velha protestou de imediato. Disse que aquilo era um absurdo, que por toda sua vida havia se dedicado à Igreja, que doara parte dos bens à paróquia depois da morte do marido e que, inclusive, havia sido catequista por longos anos.
- Portanto, eu exijo prioridade sobre estes dois, gritou. Conheço as leis divinas e estou apta para ingressar – agora – na Casa do Senhor.

O senhor de barba branca coçava e cabeça e olhava para o chão enquanto ouvia a reclamação.
- Minha senhora, conhecer a lei divina não significa nada aqui. Aliás, será até pior para a senhora. Quantas vezes a senhora levantou falso testemunho contra casais? E por quantas vezes julgou que fulano ou cicrano era indigno de frequentar a missa?

A velha fez uma cara de espanto e calou-se. Nessa altura o político de carreira já demonstrava preocupação com a direção que a conversa havia tomado. O poeta ateu permanecia sentado, indiferente a tudo.
- Mas e as obras de caridade e as boas ações que realizamos ao longo da vida? Eu, por exemplo, doei milhares de cestas básicas durante os anos em que atuei na vida pública, questionou o político de carreira.

O senhor de barba branca bateu a mão repetidas vezes no ombro do congressista.
- Meu amigo, alguém deveria ter lhe dito que obra de caridade deve ser feita no foro intimo e não se utilizando do Estado como você fez. Desse jeito qualquer um faz, não é mesmo?

O político de carreira também se calou. O senhor de barba branca prosseguiu.
- Vocês dois fizeram o bem por interesse e isso é pior que qualquer pecado. Ficaram cegos diante das interpretações humanas sobre Deus e jamais questionaram certas ações que são claramente incompatíveis com a Lei Santa.

O político de carreira e a velha beata tomaram consciência da gravidade da situação.
- E a tramitação na justiça divina não costuma ser muito rápida. Esse é um dos poucos pontos em que Céu e Terra são parecidos.

O poeta acabara de ser repreendido novamente por escrever algo na parede.
- Vejamos esse homem, disse o senhor de barba branca apontando para o poeta ateu. Ele é um sujeito sem fé, nunca acreditou em Deus mas fez o bem pelo bem sem esperar redenção divina já que não acredita nela mesmo. E por isso mesmo – e paradoxalmente – está em situação melhor que a de vocês.

O poeta ateu percebeu que falavam sobre ele e resolveu entrar na roda.
- Escutem todos: não estou nem um pouco preocupado com essa história de salvação. Ô Pedroca, se eu for passar a eternidade por aqui pelo menos me arranje um caderninho e uma caneta.

Então o senhor de barba branca foi até a mesa, puxou uma gaveta e apertou um botão vermelho que abriu um alçapão sob os pés do poeta ateu, conduzindo-o definitivamente para o Reino dos Céus.

O senhor de barba branca se dirigiu novamente à senhora beata e ao político de carreira, que a essa altura já portavam desespero em suas faces.
- Não costumamos receber escritores por aqui. Eles geralmente são responsáveis por motins que tiram a tranquilidade da Casa do Pai. Porém, diante da monotonia da eternidade, eles são mais úteis do que religiosos fervorosos ou políticos demagógicos.