segunda-feira, 4 de julho de 2011

Ares Potosinos*

*Crônica publicada na edição 1077 do Jornal Observador

Um pouco antes do almoço, enquanto caminhávamos pelas ruas de Sucre pela última vez, fui acometido por uma pequena indisposição, algo semelhante ao estado gripal. Abri mão da refeição e investi num capuccino na esperança de que a cafeína me fizesse suportar as três horas de ônibus que teríamos que enfrentar até Potosí.

A indisposição aumentou vertiginosamente no início da noite depois de uma caminhada pela aladeirada cidade, considerada uma das mais altas do mundo. Potosí está situada a cerca de 3.900 metros do nível do mar (só a título de comparação, Piraju está a 650 metros) e à primeira vista não guarda qualquer resquício do ciclo da prata vivenciado no século XVI, exceto pela existência de casarões e ruelas estreitas típicas da arquitetura colonial. Está localizada aos pés de Cerro Rico, a mais importante mina do período hoje aberta à visitação.

Embora eu estivesse piorando a cada minuto, demorei a crer que meu lastimável estado fosse resultado do soroche, o mal da altitude. Na verdade chegamos a pensar que se tratava de mais um mito em relação à Bolívia assim como os boatos em relação ao Trem da Morte.

Amanheci ainda pior. Zé Renato, Felippe, o canadense e os franceses que dividiam o quarto conosco também passaram por maus bocados durante a noite, embora não na intensidade experimentada por mim. Os sintomas do soroche são dor de cabeça, diarreia e febre, porém tendem a desaparecer depois de 24 horas de sofrimento graças à adaptação natural do corpo à altitude. Naturalmente, a conjuntura desfavorável nos obrigou a adiar a partida para Uyuni, nosso próximo destino.

Mesmo devidamente diagnosticado pelo proprietário da pensão, uma questão ainda martelava minha cabeça: Santa Cruz de la Sierra vivia um surto de dengue quando passamos por ela dias antes. Então, ligando os pontos e observando que eu carregava todos os sintomas veiculados pelas campanhas brasileiras de prevenção, considerei seriamente estar com dengue.

Estava claro que havia uma confusão no diagnóstico em função da semelhança dos sintomas e concluí que poderia ser tarde demais quando a verdade viesse à tona. Seria uma chatice imensa morrer em Potosí e ser enterrado ali porém eu já me preparava psicologicamente para esse fim à medida que minha situação piorava. Apesar do apoio psicológico e logístico de Felippe e Zé Renato, eu estava decido a voltar para Sucre e tomar um avião até o Brasil caso conseguisse levantar a cabeça do travesseiro no dia seguinte (o simples ato de erguer um copo de água era uma tarefa extremamente dificultosa naquelas circunstâncias).

Mas, graças ao mate de coca, fui me recompondo aos poucos conforme havia previsto o dono da espelunca. (Nota aos ignorantes: a coca não é droga. Ela é utilizada nos Andes há milênios pois ajuda a suportar o ar rarefeito e combate diversos males. Além da função medicinal, os mineiros mastigam as folhas da planta com o intuito de amenizar a fome durante as extenuantes jornadas de trabalho que podem chegar a 16 horas. A coca tem ainda função religiosa e mística: é utilizada em rituais e os agricultores distribuem suas folhas no campo como oferenda à Pachamama – a Mãe Natureza – antes do plantio).

Acordei na manhã seguinte quase preparado para correr a Maratona Internacional de São Paulo. No entanto, como o ônibus para Uyuni só sairia depois do meio-dia, restou-nos arcar com o atraso de um dia no cronograma da viagem – o que nos custou uma diária extra – e a possibilidade de curtir um pouco mais os ares daquela cidade maravilhosa.

Um comentário:

  1. Piruca: dando ares poéticos aos cagaços da viagem. Por que diabos tudo teria que acontecer com você? Um autorreferente...rs
    Brincadeiras à parte, mas um relato honesto e catártico sobre a nossa jornada. Viva a América do Sul!

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