terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mudança*

*Crônica publicada na edição 1048 do Jornal Observador

Recostado lateralmente no mourão da porteira, pude observar o terreiro vazio. O ciscar interminável das galinhas, o pio desesperado dos pintinhos perdidos e a coreografia do galo-rei já não existiam mais. Dali pra frente, o pomar seria de propriedade exclusiva dos pássaros. O jambeiro, que por diversas vezes testemunhara o nascimento de crônicas e a leitura de clássicos da literatura universal, não voltaria a ver este humilde adepto das letras deitado na rede fixada em seu tronco.

Ainda é perceptível o ruído do caminhão que acabara de passar por mim. Transporta móveis, eletrodomésticos e outras quinquilharias inúteis acumuladas durante todos esses anos. Simbolicamente fui o último a deixar o sítio. Logo eu, que hesitara em estabelecer residência ali dez anos antes.

A nova residência, situada a cerca de 400 metros em linha reta, pode ser vista dali. Apenas um pequeno vale separa a propriedade da zona urbana. Ainda assim, as coisas devem mudar um pouco, já que será difícil ouvir Led Zeppelin no volume máximo ou tocar guitarra com o amplificador no talo sem despertar a ira dos vizinhos.

Contudo, a proposta é refazer o pomar pois o quintal é igualmente enorme. Mas dessa vez utilizarei mudas compradas. É mais fácil e prático do que fazer eclodir as sementes para só depois plantá-las. Além de gerar frutos, sombra e atrair pássaros, as futuras árvores terão a responsabilidade de acomodar a velha rede, agora esquecida num canto qualquer da nova morada. Milho já tem. É uma pequena roça que deve garantir – neste ano ainda – matéria prima para a produção de pamonha, bolo de milho e curral. Não se anime, é tudo em escala familiar.

Penso no processo de readaptação em ambiente urbano. Isso porque o meu quarto está voltado para a rua e não será tão fácil, pelo menos no início, ignorar o fluxo de ônibus e veículos quem tem início por volta das 5 da manhã. Isso sem levar em consideração o movimento em plena madrugada de transeuntes barulhentos. Talvez seja castigo: por muitas noites andei em grupo pelas ruas com o violão em punho celebrando a vida. Não vou negar que ainda faço isso.

Por outro lado, minha nova janela vai garantir luminosidade durante a maior parte do dia, perfeito para a leitura. No momento finalizo “A Sangue Frio”, de Trumam Capote, um clássico do jornalismo literário.

“E vou viver as coisas novas que também são boas, o amor, humor das praças cheias de pessoas. Agora eu quero tudo, tudo outra vez”.

Sem hesitar, está claro que Belchior tem razão.

Um comentário:

  1. Poderia encontrar este texto em qualquer lugar do mundo e saberia que foi você que escreveu. É você ali, em cada palavra. Apesar da aparente frieza, transbordante de emoção. A mim, me resta pedir: mande notícias frescas neste disco.

    PS: Viva Belchior

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