quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O "Causo" da Carteira*


*Crônica publicada na edição 1046 do Jornal Observador

Venâncio, o experiente capataz da fazenda Nova Esperança, surpreendeu-se com o que acabara de ouvir no galpão.
- Juquinha, prepare um cavalo. Irei para a lida com vocês hoje – avisou coronel Rolando, o imponente proprietário daquelas terras.

O anúncio foi recebido com apreensão pelo capataz, que continuava a encilhar seu animal em silêncio.
- Vamos pra “Água da Onça” hoje? – perguntou coronel Rolando.
- Não coronel. A lida hoje é no “Lajeadinho” – respondeu Venâncio, para a surpresa dos campeiros.

Era mentira. A proposta inicial era definitivamente a “Água da Onça”, porção da fazenda de difícil acesso que ficava a uns seis quilômetros da sede. A região era ocupada pelo melhor gado da propriedade: quase duas mil cabeças da raça nelore. Já “Lajeadinho” era um local bem próximo, cujo rebanho era composto por bezerros recém-desmamados, de fácil manejo.

Sem qualquer hesitação aparente, os outros peões – alguns deles já sobre a montaria – entenderam o motivo da mudança. Estava claro que a ida do coronel dificultaria o desempenho das atividades já que o patrão era conhecido por manter um trote muito aquém dos campeiros. Por outro lado, o estado de saúde do coronel também preocupava Venâncio.
- E se esse homem morre por essas barrocas – pensou com seus botões. Porém não ousou confrontar o patrão. Tentar dissuadi-lo seria bater em ferro frio.

Os cavaleiros cruzaram o “Vale dos Açudes” quando o sol ainda não tinha despontado completamente. Ali havia dezenas de lagos cercados por um imenso taboal e era comum encontrar durante a noite pescadores de traíra, apesar das inúmeras placas com o alerta “Propriedade Particular – Proibido Caça e Pesca”. Embora vigorasse a determinação, os campeiros só perturbavam intrusos surpreendidos com redes ou tarrafas.

Em pouco mais de três horas, todo o trabalho fora cumprido e tanto o patrão, como os campeiros, voltaram felizes para a sede. O coronel por ter espairecido um pouco; os peões por ter não terem o azar de vivenciar o patrão sofrer outro ataque do coração em pleno mato.

Mas, já nas proximidades do galpão, a vibração positiva foi cortada por um grito angustiado: coronel Rolando perdera sua carteira durante a lida. Imediatamente, os peões retomaram com o patrão todo o trecho percorrido durante a empreitada.

Nem mesmo a convocação das mulheres e dos filhos de todos os empregados da fazenda foi suficiente para encontrar o artefato perdido. Já era quase noite quando o coronel Rolando ordenou que os campeiros ateassem fogo nos piquetes pelos quais haviam passado, para o espanto dos colonos da fazenda. Em silêncio, julgavam desnecessária uma atitude tão extremista como aquela. Até então o patrão era visto como uma pessoa razoavelmente boa de coração, mas aquela ordem trouxe à tona um homem até então desconhecido, um rancoroso, que temia que sua carteira fosse encontrada e “omitida” por algum de seus empregados.

Ainda hoje, quarenta anos depois da morte do coronel Rolando, há relatos diversos de pescadores que se aventuram à noite pela região. Um deles dá ciência de que, em noites de lua cheia, é possível avistar no horizonte a silhueta de um homem rechonchudo e agoniado que procura algo entre as ramadas do capim colonião.

Um comentário:

  1. Ah... essa não vou comentar, porque li no O Observador, quando eu tava em Pira!!!
    Mentira, vou comentar, sim! Piruca, és o cronista de Óleo! Reafirmo!!!

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