sábado, 3 de julho de 2010

O Encontro*

*Crônica publicada na edição 1029 do Jornal Observador

Quando a senha 14408 foi anunciada nos alto-falantes, todos os olhares se voltaram para o saguão de entrada. Um anjo cutucara o outro.
- Aposta é aposta, não vai pular pra trás dessa vez. Seja homem, ou melhor, seja anjo – ressaltou com certa rispidez.

A gravidade da situação fazia sentido. A pessoa por trás da senha era José Saramago, morto naquela manhã, e a aposta especulava como seria sua recepção no Palacete Celestial.

De terno desabotoado, o escritor surgiu no corredor iluminado reparando nas esculturas que decoravam o palácio. Arrumou os óculos quando parou em frente à La Pietá, de Michelangelo.
- Ora pois....mas esta obra não estava até ontem na Basílica de São Pedro? – pensou alto, já desconfiando da fajutice.
- É uma cópia barata, José, eu sei. Mas é que o translado da Terra para o Céu tem causado uma série de problemas – disse o Deus assim que a porta do salão principal se abriu. – Cada vez que eu dou sumiço numa obra de Picasso os humanos ficam obcecados em encontram um bode expiatório – apontou o Senhor.

Assim que Saramago entrou e a enorme porta de madeira se fechou, os anjos que despachavam na ante-sala deixaram os seus postos e colaram os ouvidos na parede. Ninguém queria perder uma cena sequer do encontro histórico.
- Desde a vinda de João Paulo II que eu não via um tumulto desse porte na repartição – apontou um dos anjos apostadores.
- É um fato – continuou o outro sem desencostar um milímetro da porta maciça. – Nem Lennon, que já chegou se comparando ao Filho do Homem, bagunçou tanto o coreto.

Cerrados no salão principal, os cavalheiros trocaram cordialidades como velhos conhecidos. Em seguida diminuíram o tom.
- É pra evitar vazamento na imprensa – apontou Deus do alto de sua sabedoria. – Fui obrigado a pedir segredo de justiça no seu caso, José.
Saramago declarou-se surpreso com o assédio.
- Só espero que eles não leiam meus livros no expediente.
- De maneira alguma. O Estatuto dos Servidores Celestes proíbe, em seu artigo quarto, livros de auto-ajuda e obras de um certo escritor português radicado na Espanha – emendou Deus.

Gargalhadas abafadas foram ouvidas por todo o prédio. Um dos arapongas tentou esquivar-se mas foi surpreendido pelo outro anjo: havia perdido a aposta.

Recomposto, o Senhor solicitou que o senhor assinasse no local indicado pelo xis.
- Seu visto permanente está concedido. Com ele, você poderá inclusive trabalhar para custear sua estadia – informou Deus num tom mais professoral.

Saramago botou o documento no bolso interno do paletó e levantou-se. Despediu-se com um aceno. Já estava com a mão na fechadura quando foi novamente chamado à mesa.
- José, me faça cá um favor: autografe esse “exemplar” de O Evangelho Segundo Jesus Cristo. É o seu manuscrito original. Deu um trabalhão danado mas eu consegui resgatá-lo – disse Deus meio vexado.

Pouco tempo depois o Le Monde traria o furo: “Ladrões furtam originais de O Evangelho Segundo Jesus Cristo”.

2 comentários:

  1. Piruca, muito boa a relação. Belas palavras, bela sacada. Aposto que a recepção do homem não teve ter sido diferente ao seu relato. Um dia saberemos (ou não)...
    Uta!

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  2. Não saberemos, Piruca: nós iremos para o inferno.

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