quinta-feira, 22 de abril de 2010

Despedida

Camila reconduz para trás da orelha a franja que grudara em sua boca por causa do caminhar apressado que sacolejava o seu corpo. Tem ainda em mente o ruído recente oriundo do fechar brusco de uma porta.

Não olha para trás. O único resquício com o já passado está em imaginar, mais por curiosidade do que por maldade, como sua partida repentina será assimilada. Ao mesmo tempo, se questiona se está agindo de maneira correta, se não seria melhor acabar tudo formalmente, civilizadamente como fazem os casais normais. Acontece que provavelmente iria suceder o mesmo das outras crises: ele iria se esvair em lágrimas, prometer mudar e lhe dar mais atenção, além de propor um jantar romântico num restaurante qualquer para demonstrar sua disposição em se regenerar. Ela, mais uma vez, iria aceitar embora já soubesse que nada daquilo era verdade e que o armistício não chegaria ao próximo final de semana.

De qualquer forma, o mais provável é que ele nem vá notar a casa vazia. Continuaria indiferente, como sempre fora, à sua existência. Talvez só desse falta lá pelas 20 horas, horário em que ela normalmente chegava da academia. Ainda assim permaneceria um bom tempo entretido em planilhas armazenadas no notebook ou então concentrado nas séries policiais daquele canal a cabo e só ligaria depois das 10 da noite, preocupado se ela se metera em algum acidente que pudesse ter causado algum dano ao carro.

Como ele havia mudado nesses poucos anos de convivência sob o mesmo teto. Transformara-se num troglodita, impaciente enquanto ela se vestia e neurótico nas crises idiotas de ciúmes em festas ou barzinhos, enquanto ela era obrigada a tolerar o seu olhar devorador em cima de qualquer mulher que passasse por perto.

Como se permitiu chegar a essa situação? Deveria ter reparado na índole dele ainda durante o namoro. E rememorava as inúmeras vezes em que ele ligava no sábado à tarde para avisar que iria pegá-la para um passeio. Ela se arrumava, se perfumava, preparava o cabelo, escolhia uma roupa legal e se prostrava à sua espera. Mas o passeio – quase sempre – tinha o único intuito de encaminhá-la para “ajudar” na organização do churrasco da família ou dos amigos futeboleiros dele. Ainda assim, ela frequentemente levava a fama de vagabunda da matriarca da casa, que reportava publicamente ao filho a ineficiência e a má vontade da futura nora.

Como fora tola tantas vezes. Deveria ter botado sal no prato da velha a fim de causar-lhe um infarto fulminante. Mas, principalmente, não deveria ter resistido aos flertes descarados daquele amigo dele sempre presente nesses eventos. Deveria tê-lo beijado (mesmo sem vontade) na frente de todos e assim causar uma hecatombe no seio daquela família.

Pensou melhor. Não gostaria de ter qualquer atitude que se assemelhasse à índole dele.

3 comentários:

  1. Acho que a maioria dos mortais, um dia ou outro coloca essas conclusões na balança, em várias situações da vida, mas poucos tem a coragem de colocar os livros na bolsa, o chinelo nos pés cansados e voltar, para um aconchego, onde reconheçamos quem ainda somos.. Ou partir, para um novo rumo, passar uma borracha e tirar do baú empoeirado um novo "eu". Parabéns!

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  2. Piruca, como diria o meu cumpadre Leoni: "A gente sempre sofre, a gente sofre sempre por querer". Belo mergulho ao universo feminino. Difícil fazer isso sem se perder no feminismo barato e você conseguiu

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  3. Frávio...mto boa passagem e descreve mto bem me senti no churrasco com eles...Vc é foda...

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